sábado, 30 de novembro de 2013

O DEVANEIO É UMA DOENÇA


FOLHA.COM 13/12/2012 - 03h01


DE SÃO PAULO



Cansada de sonhar de olhos abertos, uma leitora, Ana, quer saber mais sobre devaneios: "Por que acabo sempre fugindo para esse lugar fictício, onde tudo pode ser tão melhor ou pior, um mundo do que poderia ser, do que poderia ter sido, da pior hipótese fantástica, pretéritos imperfeitos, mais que perfeitos, futuros incertos -e quando vejo, perdi tanto tempo com isso?".

Tenho carinho pelos sonhos de olhos abertos. Até o começo da adolescência, o devaneio era meu aliado contra o que me parecia ser a mediocridade do mundo.

Para mim, como para Ana, o devaneio era o país de onde eu vinha (minha origem escondida) ou minha pátria futura; de um jeito ou de outro, era meu passaporte para um outro mundo, que me salvaria de meu lugar e de meu presente.

Graças ao devaneio, assisti a centenas de aulas chatérrimas aparentando minha absoluta atenção (embora de olhos um tanto vidrados). Quando atravessei a dolorosa época em que os adolescentes menosprezam os seus pais, o devaneio me consolou, alimentando a certeza de que eu, de fato, pertencia a outra família.

Enfim, à força de contar histórias para mim mesmo, aprendi a contá-las para os outros.

O que fez com que, aos poucos, meu devaneio se acalmasse (por sorte, sem se exaurir)? Será que eu "amadureci"? Ou será que as aulas, o trabalho e os amores se tornaram interessantes, e a necessidade de sonhar diminuiu?

Na hora de explicar o excesso de devaneio, o adolescente tende a acusar a realidade na qual ele vive, a qual mereceria o enfado que ela lhe inspira.

Mas, em geral, não há realidade enfadonha, apenas indivíduos enfadados, que, por alguma razão, não enxergam o encanto possível do dia a dia.

Ao devanear, eu me afasto da realidade. Por outro lado, sem devanear, mal consigo inventar e desejar realidades diferentes. O que é pior? Entre renunciar a devanear e sucumbir ao devaneio, talvez seja pior renunciar a devanear.

Infelizmente, enquanto a gente sonha sossegado, alguns se esforçam para transformar o devaneio num transtorno, se não numa doença. Desde um texto de 2002 no "Journal of Contemporary Psychotherapy" (revista de psicoterapia contemporânea, http://migre.me/cjDUi), monitoro a ascensão do
"transtorno" de devaneio excessivo e "mal-adaptativo" (ao mesmo tempo, desadaptado e capaz de comprometer nossa adaptação ao mundo).

Rapidamente, os blogs se multiplicaram -tanto de pessoas se queixando de seus devaneios excessivos como de médicos interessados em registrar o novo transtorno e propor uma cura. Dez anos atrás, o devaneio era considerado como fuga de um provável abuso infantil. Hoje, é possível ser sonhador sem ter sido abusado; é um alívio.

No fim de 2011, foi publicada, em "Consciousness and Cognition" (consciência e conhecimento), uma pesquisa detalhando o sofrimento dos sonhadores compulsivos (http://migre.me/ciyPG): blogs e sites fizeram uma festa.

Aprendemos que os sonhadores de olhos abertos sentem vergonha de sua condição. Eles se escondem, mas podem ser identificados porque, sem se dar conta, enquanto sonham, eles atuam seus devaneios em gestos e palavras (ou seja, falam sozinhos). Enfim, eles precisam ser ajudados porque tudo isso leva a ansiedade e depressão.

Li recentemente, num blog, a carta de uma mãe preocupada porque o filho, de sete anos, não para de sonhar em proteger o mundo contra os malvados ou em distribuir dinheiro aos pobres. Será que, nas próximas décadas, o devaneio ocupará o lugar do transtorno de deficit
de atenção?

Desde 2008 (http://migre.me/ciyZL), alguns garantem que a fluvoxamina (remédio, em tese, para transtornos obsessivo-compulsivos) cortaria o devaneio excessivo. Se os laboratórios decidirem que medicar o devaneio é um bom negócio, que Deus acuda as crianças.

O devaneio excessivo é o hábito de Dom Quixote, Madame Bovary, dois terços dos adolescentes, quase todos os autores de novelas e romances etc.

Transformar esse hábito, tão humano, em "transtorno", é uma tentativa de regular nossas vidas com a desculpa higienista: tudo nos é imposto para nossa "saúde" e nosso bem. Pararemos de sonhar porque é mais "saudável" prestar atenção só no que está na agenda de hoje?

No fundo, nada disso me estranha. Desde o século 19, as regras para uma vida saudável (física e psíquica) são nossa nova moral. E esse ataque contra o devaneio era previsível: qualquer forma de poder prefere limitar os sonhos de seus sujeitos.

ccalligari@uol.com.br
@ccalligaris


Contardo Calligaris, italiano, é psicanalista, doutor em psicologia clínica e escritor. Ensinou Estudos Culturais na New School de NY e foi professor de antropologia médica na Universidade da Califórnia em Berkeley. Reflete sobre cultura, modernidade e as aventuras do espírito contemporâneo (patológicas e ordinárias). Escreve às quintas na versão impressa de "Ilustrada".

DESLEIXO COM A SAÚDE

Postos fechados revoltam pacientes em Porto Alegre Ronaldo Bernardi/Agencia RBS

ZERO HORA 30 de novembro de 2013 | N° 17630


EDITORIAIS



As precárias condições de postos de saúde da Capital, somadas à falta de médicos em pontos considerados essenciais para o atendimento, evidenciam mais uma vez a má administração, pelo setor público, dessa área vital para a sociedade. Basta uma simples inspeção nas instalações desses postos para se constatar a degradação, registrada em anúncio publicado ontem pelo Sindicato Médico do Rio Grande do Sul (Simers). A prefeitura de Porto Alegre e as administrações de outros municípios gaúchos nos quais a questão vem sendo negligenciada devem explicações convincentes para o fato de, apesar das cobranças unânimes e frequentes, os avanços não ocorrerem.

Um aspecto preocupante é que, enquanto a deterioração dos postos de saúde se acentua, a histórica alegação de falta de recursos financeiros perde cada vez mais sentido. Relatório de fiscalização do Tribunal de Contas da União (TCU), divulgado agora, revela que, apenas em 2012, Porto Alegre deixou de aplicar R$ 4,9 milhões no Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu). Por mais que o poder público se esforce em justificar o fato de recursos disponíveis não estarem sendo usados numa área tão carente de verbas, em Porto Alegre e em outras cidades, essa é uma questão inadmissível.

A particularidade de um volume tão elevado de recursos ficar em caixa, sem ser usado, levou o TCU a definir quadros como o de “não realização de ações de saúde”, “agravamento de situações de risco” e “oferta de serviços à população aquém da capacidade financeira disponível”. É lamentável que isso ocorra, ainda mais numa área na qual as explicações derivam sempre para a falta de dinheiro.

Fica claro, cada vez mais, que uma das explicações para a falta de um mínimo de qualidade no atendimento a pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS) é a falta de condições dos gestores públicos. Cada vez mais, portanto, as alternativas precisam ser buscadas não apenas na base de mais verbas, mas também em maior aperfei- çoamento gerencial.

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

O PEIXINHO NEMO, SIMBIOSE E DESONESTIDADE

FOLHA.COM 28/11/2013 - 03h30


Lisieux Eyer de Jesus




Caro professor Cerqueira Leite:

Fiquei muito ofendida pelo desrespeito aos médicos em seu artigo. Porque afirma que nós médicos somos, como um grupo, desonestos. De que raposas (nós) vigiam galinheiros (pacientes) e comem ovos com fartura.

Ensinar é um dos meus grandes prazeres. Em aulas, conferências, artigos, livros. Mais ainda na beira dos leitos, nas salas de cirurgia. Técnica sim, mas principalmente a essência mais densa, mais profunda do que eu e outros médicos fazemos. Que depende de sentir quem é o outro, decidir usando o conhecimento modificado por aquilo que se intui. O desrespeito por que passamos ultimamente ofende, porque o que fazemos está ligado ao que somos. A degradação do que somos frente aos nossos pacientes é inadmissível, insuportável.

Como a absoluta maioria dos meus colegas, nunca fui a nenhuma "gostosa" conferência com despesas pagas por companhias farmacêuticas. Já fui a muitas pagando pelo prazer de aprender mais. Sacrifiquei dinheiro de viagem de férias, carro melhor, vestido, para pagar por congressos interessantes.

Não me arrependo. Foi um prazer. Que devolvi dividindo o que trouxe das viagens: ensinei o que aprendi, usei para tratar as pessoas, quase sempre pobres. Ganhei beijo de criança, lágrima de mãe.

A escolha de medicamentos para tratar doentes é técnica e exclusiva de médicos. O assédio da indústria farmacêutica é uma tentativa de promover sua mercadoria, natural no ambiente capitalista em que vivemos. O que não é natural é pressupor a desonestidade de quase 400000 profissionais.

A indústria farmacêutica não tem simbiose conosco. Ela nos assedia. Mas a proporção de profissionais com prazeres pagos pelas farmacêuticas é pequena. É reservado a áreas lucrativas e profissionais formadores de opinião, cientistas e pesquisadores, geralmente não profissionais de assistência. Estes cientistas são obrigados, se forem médicos, a declarar em suas conferências o nível de comprometimento que tenham com a indústria. Qualquer patrocínio em congresso médico é claro, declarado. O código de ética médica proíbe aquilo de que nos acusa, professor.

Ouso dizer que a maioria dos médicos recebe os propagandistas de medicamentos com certa má vontade. Eles repetem conceitos que não compreendem e perdem o nosso tempo. As únicas vantagens --a não ser que o senhor ache que médicos são comprados com uma canetinha ou um mouse pad-- são umas amostras grátis, levadas imediatamente para o serviço público, onde gente pobre tem dificuldade de comprar remédio.

O médico não é um estereótipo cínico de Bernard Shaw, é alguém que, literalmente, sofreu a sua formação. Tem compromissos e ideias.

Não nos confunda com a indústria farmacêutica. Eles trabalham por muito dinheiro. Nós trabalhamos pelo nosso sustento e pelo nosso ideal. É bastante diferente.

As corporações médicas já tiraram do mercado uma porção de medicamentos. Verifique a história da cisaprida, e as denúncias de risco cardiológico para crianças. Os conflitos recentes quanto ao uso de Viagra e congêneres para tratar frigidez (nem preciso dizer o quanto seria lucrativo...). As discussões quanto à futilidade terapêutica em algumas situações terminais, particularmente em oncologia.

Isso tudo não tem nada a ver com o Mais Médicos. Nossa oposição ao programa é real. Contra a inserção de pessoas sem qualificação definida para tratar dos nossos pacientes. Contra a inserção de trabalhadores cubanos sem direito nenhum, sem passaporte e sem bolsa. Contra a demissão de brasileiros, substituídos por estrangeiros mais baratos. Contra a politização barata do que não tem preço: a vida e a integridade física das pessoas.

Talvez o senhor não saiba dos casos de doença respiratória para quem foi prescrito ingerir casca de banana. Ou das doses quase cinco vezes maiores do que a correta de um determinado antibiótico. Ou da prescrição pediátrica que usou medicamentos para uma criança que devia ter vários pesos diferentes, a julgar pelas posologias dos medicamentos prescritos. Ou da prescrição de um medicamento que no Brasil só é permitido para uso veterinário, em equinos.

Em resposta à sua pergunta ("Quantos dos médicos que se declaram contra o programa repudiaram ofertas de passagens e estadias em gostosas conferências? Quantos colocam o interesse da sociedade acima dos seus próprios e de sua corporação), a maioria absoluta dos médicos brasileiros jamais teve a oportunidade de recusar um convite para uma "gostosa" conferência, porque nunca recebeu um. E a maioria absoluta dos médicos coloca a sociedade no mesmo patamar de prioridade dos outros cidadãos educados deste país.

LISIEUX EYER DE JESUS, 48, doutora em ciências cirúrgicas pela UFRJ, é presidente da Sociedade de Cirurgia Pediátrica do Rio de Janeiro

*

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

JUDICIALIZAR? SIM, É PRECISO



ZERO HORA 22 de novembro de 2013 | N° 17622

ARTIGOS



 Rodrigo Noschang*



Recentes reportagens de Zero Hora reacenderam a discussão sobre o fenômeno da judicialização de demandas da saúde, do qual o Estado do Rio Grande do Sul é o maior expoente no país.

Necessário estabelecer, sob o viés prático, as principais causas desta consequência:

1) o Sistema Único de Saúde (SUS) não consegue absorver toda a demanda da população, seja por falta de investimentos, seja por ineficiente estruturação e administração;

2) há uma grande disparidade entre as listas oficiais de dispensação/ realização obrigatória de medicamentos/ procedimentos via SUS e as necessidades da população, segundo critérios médicos dos próprios profissionais vinculados ao sistema, os quais, obviamente, devem sempre receitar o melhor tratamento para seus pacientes;

3) a população, em muitos casos, não vem conseguindo acesso ao tratamento necessário pela via administrativa, mesmo após percorrer longo e tortuoso caminho, o que leva à busca pela efetivação de seus direitos de modo judicial, frequentemente sob orientação dos próprios gestores da saúde pública;

4) no Rio Grande do Sul, a população carente – que compõe praticamente a totalidade daqueles que buscam na Justiça o seu direito à saúde – tem garantida a assistência jurídica gratuita por meio da Defensoria Pública do Estado, o que facilita a dedução de suas pretensões perante o Poder Judiciário.

Então, o que fazer quando uma pessoa que tem rendimentos mensais de R$ 2 mil precisa de um medicamento que custa R$ 25 mil por mês e deveria estar disponível na farmácia do Estado mas não está? E quando uma criança precisa de um exame não disponibilizado pelo SUS para obter um correto diagnóstico de sua doença e seus pais não possuem condições de pagar por ele? E quando um idoso está na lista de espera por uma simples consulta com um especialista há mais de dois anos?

Sim, judicializar é preciso, principalmente quando esgotadas todas as possibilidades de obtenção do tratamento pela via administrativa, situação frequentemente enfrentada por muitos e que não pode ser encarada com normalidade e subserviência.

Fraudes existem? Sim, infelizmente, afinal, Maquiavel já dissera que “os homens são mentirosos ingratos”. Mas discrepâncias são a exceção, e devem ser combatidas por todos, com a punição dos envolvidos.

Todavia, não se pode afastar, modo algum, o acesso à Justiça em questões desta natureza, sob pena de retrocedermos a tempos outros em que o indivíduo servia ao Estado, e não o inverso. Felizmente, o Poder Judiciário tem dado procedência a essas demandas, reconhecendo a supremacia dos direitos à vida e à saúde sobre outros colidentes.


*DEFENSOR PÚBLICO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

RIO GRANDE DO SUL, CAMPEÃO EM TUDO

ZERO HORA 21 de novembro de 2013 | N° 17621

ARTIGOS

Paulo de Argollo Mendes*



Não é novidade que o Rio Grande do Sul lidera em número de ações judiciais para obter tratamentos pelo SUS. Como não é novidade que o Estado ocupa a última posição em gastos com saúde, que responderam por 9,71% da receita corrente líquida em impostos e transferências em 2012 (dados do Ministério da Saúde), quando deveriam ser 12%. São Paulo está em 16º lugar, aplica 12,43% (quase 30% a mais). Mas um tema marginalmente abordado na reportagem de Zero Hora do domingo passado sobre a chamada judicialização da saúde mereceria reflexão.

Há sempre uma voz que se outorga a supremacia de delimitar o acesso a um direito assegurado na Constituição Federal como universal, escrito no artigo 196. São incontáveis os gestores ocupantes de cargos eletivos ou de confiança (CCs) que tentam dizer quando, onde, como e etc. os brasileiros terão direito ao que está na sua maior lei, apelidada de Constituição Cidadã, e que foi alvo do clamor dos protestos recentes.

Gostaria de ler nos jornais um diagnóstico detalhado sobre a demanda não suprida pelo SUS quando o doente necessita e não quando o gestor decide que receberá (normalmente com uma distância de anos, atestada por ZH). Mas lê-se o mesmo roteiro. Alguém – médicos sempre são os mais alvejados – está cobrando ou receitando algo que não deveria. O gestor demora anos para acolher o tratamento, e a solução deve seguir os valores do SUS?

Será que somos líderes na judicialização por causa de algumas situações que merecem, claro, averiguação e responsabilização? Ou porque há milhares de gaúchos que precisam ir à Justiça para ter o que singelamente deveria estar disponível de forma mais transparente e facilitada? Será que boa parte do que é buscado via judicial não poderia ser alcançada em postos e farmácias do SUS?

A Secretaria Estadual da Saúde, a Procuradoria-Geral do Estado (PGE) e a Famurs realizam periodicamente encontros para atacar os algozes do que parece ser um assalto aos cofres públicos, orquestrado por pacientes orientados por médicos ou advogados. Por que não vejo a mesma abordagem feita sobre a família de classe média (cuja condição socioeconômica a impediria de solicitar o auxílio ao Estado) que busca o leite especial, aos casos de transplante e outros procedimentos de maior complexidade (por óbvio, de custo mais elevado)? O SUS é o maior financiador desses procedimentos que beneficiam doentes de todos os extratos sociais – e cumpre seu papel. Pior é descobrir que medicamentos para evitar rejeição de órgãos faltam aos pacientes. Qual é a lógica?

Infelizmente, a sociedade ainda é servida por uma versão ao gosto do senso comum para um tema que incontestavelmente confronta a eficiência das instituições em zelar e agir para fazer valer direitos (saúde, educação, segurança...), além de um claro jogo midiático dominado por acusações de supostas atitudes de profissionais e cidadãos contra o interesse público. Está mais do que na hora de imprensa e setores sociais (organizados ou não) inverterem a ordem das coisas. O SUS foi concebido para atingir a todos. Cada um que trate de cumprir a sua parte.



*MÉDICO E PRESIDENTE DO SINDICATO MÉDICO DO RIO GRANDE DO SUL (SIMERS)

DINHEIRO NA CONTA, EPIDEMIA NAS RUAS E METAS INCOMPLETAS


ZERO HORA 21 de novembro de 2013 | N° 17621

CARLOS GUILHERME FERREIRA


AIDS

Dinheiro na conta, epidemia nas ruas AIDS

Líderes na incidência da doença entre Estados e Capitais, Rio Grande do Sul e Porto Alegre investem, em média, R$ 7 de cada R$ 10 para prevenção


Rio Grande do Sul e Porto Alegre lideram os casos de aids entre Estados e Capitais, mas não conseguem gastar todo o dinheiro à disposição para combater a disseminação da doença. A cada R$ 10 recebidos desde 2003, R$ 3, em média, permanecem nos cofres públicos. Os recursos acabam presos na burocracia da máquina estatal e, também, na emaranhada teia das relações políticas.

Desde a implantação da Programação de Ações e Metas (PAM) pelo Ministério da Saúde, em 2003, os municípios gaúchos receberam em conjunto R$ 85,4 milhões. Para se ter uma ideia, a soma de recursos à disposição em julho deste ano chegava a R$ 23,7 milhões. Porto Alegre ganhou R$ 11,1 milhões desde 2004, e fechou julho último com R$ 3,1 milhões nos cofres.

Mesmo com dinheiro disponível, o quadro de epidemia – reconhecido pelas autoridades – não recua. É o que mostrará o boletim epidemiológico de 2012 do Ministério da Saúde, a ser divulgado nos próximos dias. Os dados extraoficiais apontam 43 casos de aids a cada 100 mil habitantes no Rio Grande do Sul – um leve crescimento, comparado ao número anterior. Porto Alegre apresenta o dobro, índice de 99,1, com redução inferior a um ponto.

O prefeito da Capital, José Fortunati, classificou os dados como “assustadores” na manhã de terça-feira. Ele falava a cerca de 50 pessoas no salão nobre da prefeitura, por ocasião do lançamento do Plano de Enfrentamento de HIV/Aids em Porto Alegre – uma estratégia com ênfase em grupos com maior risco de exposição, como gays, homens que fazem sexo com homens, travestis, transexuais e mulheres.

Disse o prefeito que o comportamento da população gaúcha – com acesso a informações de saúde – precisa mudar:

– Os índices têm muito a ver com certa soberba e arrogância do povo gaúcho.

Haveria uma espécie de sentimento de imunidade, avaliou. Mas nem todos concordam.

– O que ele (Fortunati) diz é baseado em conhecimento empírico – afirma a coordenadora executiva do Fórum de ONG/Aids do Estado, Márcia Leão, ao lamentar que, até hoje, não tenha sido aplicada na Capital uma Pesquisa de Conhecimentos, Atitudes e Práticas (PCAP), sobre comportamento sexual.

Atitudes à parte, a gestão pública também compartilha a responsabilidade. É o que admite o coordenador da Política Estadual de DST/Aids, Ricardo Charão.

– Durante muitos anos, a porta de entrada para diagnóstico foi muito estreita – explica.

Como o Estado começou a aplicar testes rápidos de Aids em unidades de saúde de cerca de 200 municípios, desde junho de 2012, Charão considera natural o patamar alto de notificações. A lógica é simples: mais amostras, mais casos.

Para Márcia Leão, porém, faltam vontade política e ações mais adaptadas à realidade. Segundo ela, é difícil as autoridades comprarem brigas com setores conservadores, por vezes avessos às políticas de Aids.

De fato, os municípios do Rio Grande do Sul patinam na aplicação de recursos. Ficam abaixo da média da Região Sul, atrás de Paraná e de Santa Catarina – segundo lugar no ranking de Aids, onde se gastam R$ 9 em cada R$ 10. E a execução de Porto Alegre não alcança a média das capitais, de R$ 8 aplicados a cada R$ 10. Nesta mesma comparação, em Curitiba sobram R$ 0,40.

– A gente vem melhorando a performance nos gastos. Temos alguns entraves burocráticos de projetos já empenhados. Não tem saldo livre – afirma o coordenador da área técnica de DST/Aids e Hepatites Virais da Secretaria de Saúde da Capital, Gérson Winkler.

– Os entraves e as dificuldades são aqueles todos do serviço público. Geralmente temos uma máquina muito burocratizada para compras e repasses de recursos – diz Charão.

Para a responsável pela coordenação no país da Unidade de Políticas Sociais do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), Nena Lentini, são aceitáveis os 70% de gastos de Porto Alegre e do Estado – feita a ressalva do ideal, que é 100%.



Metas são cumpridas de forma incompleta



Nos próximos dias, a Comissão de Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST) e Aids do Conselho Estadual da Saúde vai avaliar os resultados de 2012 da Programação Anual de Metas (PAM) de combate à doença. Se a PAM for reprovada, o Conselho remeterá parecer com pedido de providências ao Ministério Público (MP). Caberá ao órgão decidir se fará investigações.

Em relatório próprio, a Secretaria Estadual da Saúde apontou 83% de execução dos 15 objetivos propostos. Um indicador muito bom, avalia o coordenador da Política Estadual de DST/Aids, Ricardo Charão.

– Foi a primeira vez que passamos de 70% – afirma.

Das 15 metas, quatro ficaram entre 50% e 70%: qualificar rede de assistência às pessoas com HIV/Aids, implantar o Plano Estadual de Enfrentamento da Feminização da epidemia em 44 municípios, qualificar o Projeto Saúde e Prevenção nas Escolas (SPE) e executar seis ações de prevenção.

Este último objetivo, dividido entre seis submetas, teve 50% de realização. Exemplos: enquanto a campanha permanente de prevenção e de incentivo ao diagnóstico alcançou 100%, a parceria com a Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe) para enfrentar aids e DSTs no sistema prisional não saiu do zero.

Existe nas cadeias a relação sexual entre homens (chamada de HSH), um dos focos de combate à epidemia de aids. A justificativa aparece no relatório da PAM: “Não houve condições para executar a ação devido à falta de pessoal para conduzir as articulações e realizar as atividades”.

O relatório de monitoramento de 2012 de Porto Alegre não está fechado porque ainda há ações em execução, sustenta o coordenador da área técnica de DST/Aids, Gérson Winkler. Em documento próprio, a prefeitura aponta 15 pontos na PAM, com 11 metas executadas de forma “adequada” e quatro com necessidade de “revisão de ações e/ou insumos”. Mas não traz detalhes do trabalho nem quanto foi gasto. Trata-se de um monitoramento quantitativo, e não qualitativo, afirma a coordenadora executiva do Fórum de ONG/Aids do RS, Márcia Leão.

– Temos de evoluir – admite Winkler.

Tanto Capital quanto Estado não enviaram a tempo os resultados das metas de 2012 para a análise de monitoramento do Ministério da Saúde, fechada em março.

Porto Alegre lidera a incidência da doença entre as capitais desde 2006, enquanto o Rio Grande do Sul ocupa o topo do ranking nacional a partir de 2000.





quarta-feira, 20 de novembro de 2013

CONSPIRAÇÃO CONTRA A SAÚDE


ZERO HORA 19 de novembro de 2013


EDITORIAL


Poucas ideias merecem o reconhecimento unânime de profissionais da saúde como as Unidades de Pronto Atendimento, criadas para desafogar as emergências dos hospitais e racionalizar a assistência básica. Pois as UPAs, que deveriam merecer atenção prioritária, têm exemplos no Estado de total desleixo com os recursos públicos e com as demandas da população. As quatro unidades mostradas por este jornal, que foram concluídas mas estão impossibilitadas de funcionar por razões diversas, indicam acima de tudo leniência administrativa. Não pode haver desculpa para a burocracia e para o jogo de empurra entre o governo estadual e os municípios contemplados com os investimentos.

Mais do que desperdício de dinheiro, as obras inauguradas e fechadas a seguir representam o descaso com um serviço essencial, pois pacientes que poderiam ser atendidos em suas comunidades acabam tendo que buscar recursos longe de casa. Os municípios, que participaram da construção das UPAs, alegam agora que não têm recursos para mantê-las. Outras prefeituras apresentam problemas específicos, e uma delas embargou um prédio por falhas estruturais. Combinadas, as omissões, as desculpas oficiais e a ganância de quem ergueu uma unidade sem condições de uso conspiram contra uma ideia que não poderia ser tratada com tanto desprezo.

Quando confiar na presteza e na qualidade do atendimento das unidades, a população deixará de recorrer aos hospitais. Mas em alguns casos uma das deficiências é justamente a de equipamentos. Como os governos irão convencer as pessoas de que as UPAs prestam serviços de excelência, se estão desaparelhadas? Os casos citados devem ser resolvidos com urgência, ao mesmo tempo em que se esclarecem as responsabilidades pela inoperância de estruturas que consumiram R$ 13 milhões e que poderiam estar atendendo até 900 pessoas por dia, num Estado em que os hospitais lotados são a expressão irretocável do caos na saúde pública.

EMERGÊNCIA E UPAS ARTIGOS

ZERO HORA 20 de novembro de 2013 | N° 17620

ARTIGOS

César Augusto Trinta Weber*



O editorial de ZH intitulado Conspiração contra a Saúde retratou o caos na saúde pública ao trazer a realidade do descaso dos administradores públicos e da leniência da burocracia estatal com o exemplo das UPAs, que foram construídas em municípios gaúchos e que se encontram fechadas por falta de infraestrutura, depois de inauguradas.

Criadas pelo governo federal como remédio do tipo elixir, pelos supostos efeitos miraculosos, as UPAs seriam a solução mágica para o problema crônico da superlotação nas emergências. Nos casos de emergência, os primeiros momentos são decisivos para a recuperação do paciente, o que significa dizer que o acesso imediato ao tratamento médico é uma necessidade que se impõe para se evitarem sequelas ou a própria morte.

Em uma análise reduzida dessa questão da superlotação nas emergências, tal fenômeno pode ser explicado, pelo menos, sob dois aspectos maiores, ambos que denunciam o malogro do sistema de saúde. O primeiro aspecto é aquele que revela, de fato, que o agravo de saúde do cidadão que busca acessar a UPA é um caso de emergência médica e, portanto, que necessita, realmente, de um equipamento de saúde com capacidade instalada para esse nível de complexidade de atenção, que funcione 24 horas e esteja, assim, preparado para atender à gravidade desses casos, como requer esse tipo de situação.

O segundo é o inverso do primeiro. É quando o usuário que procura a emergência o faz não pela gravidade do seu caso de saúde, mas porque não consegue ter no posto de saúde o atendimento esperado. Esse atendimento que poderia e deveria ser feito na rede básica de saúde não o é porque as pessoas, quando conseguem “ficha” para chegar à unidade de saúde, não obtêm uma resolução ao seu problema.

Em ambas as situações, a desordem do sistema de saúde se clarifica. Na primeira situação, o problema de superlotação nas emergências não será resolvido pela premissa única de que o “desafogo” se dará somente por UPAs funcionando. O paciente grave atendido na emergência, para ter “alta”, precisa que leitos hospitalares existam em número suficiente, o que não há! Estando disponíveis esses leitos, o fluxo de entrada e saída nas emergências tenderá a uma estabilidade como se fosse uma propriedade autorreguladora do sistema.

Na segunda, a maneira pela qual se impede que as pessoas recorram às emergências quando não precisam e garantir que elas tenham resolvidas as suas necessidades de saúde na rede de cuidados básicos. Para isso, é preciso que a assistência primária esteja organizada de uma maneira que a cobertura pelas equipes de saúde da família seja efetiva e essas em pleno funcionamento. E mais, que a capacidade resolutiva dessas unidades se mostre adequada uma vez que é sabido que devem ser capazes de solucionar ao redor de 90% dos casos sob sua responsabilidade.

A falta de planejamento para fazer com que o SUS possa consolidar os avanços de ser a assistência à saúde de qualidade um direito universal é um dos reflexos direto do despreparo dos gestores e do descompromisso desses com a população.

*Médico

A JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE

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ZERO HORA 20 de novembro de 2013 | N° 17620


EDITORIAIS



São inúmeros os indícios de que um direito do cidadão se transformou em instrumento de abusos e delitos contra o setor público. O aumento das demandas por medicamentos via judicial, revelado por este jornal em reportagens publicadas a partir de domingo, aciona um alerta que deve ser observado por todos, advogados, defensores públicos, MP, Justiça e governos. Merece investigação o fato de que mais da metade das ações ajuizadas no país, reivindicando tratamentos pelo SUS, esteja tramitando no Rio Grande do Sul. É no mínimo estranho que existam no Estado 113 mil processos em andamento. No Paraná, com número semelhante de habitantes, estes são 1,7 mil, e em São Paulo, com população equivalente a quatro vezes a gaúcha, somam 44,6 mil.

Não se imagina que o forte ativismo em defesa dos direitos dos beneficiários seja capaz de explicar tantas diferenças. Há, como mostraram as reportagens, sinais evidentes de que, paralelamente a ações bem-intencionadas, se criou uma indústria em torno da reclamação de medicamentos na Justiça. São coniventes ou cúmplices dessa situação advogados, servidores públicos e indústrias, mesmo que muitos produtos não sejam oficialmente recomendados. É lamentável que, nesse contexto, tenham se confirmado suspeitas de que, além de forçar a venda, os fornecedores superfaturam preços. Para os espertalhões, se o Estado é quem paga a conta, o valor a ser cobrado pode ser o mais alto possível.

Socorrer-se da Justiça é uma atitude extrema, mas legítima, contra a burocracia e a resistência do setor público em cumprir suas obrigações, em quaisquer áreas. A banalização dos recursos, no entanto, faz com que todos os contribuintes banquem tratamentos que, em casos citados, poderiam ser assumidos pelos próprios requerentes, além de serem cientificamente questionáveis. Não se concebe igualmente que o Estado seja obrigado a pagar por produtos dietéticos, chocolates e guloseimas, incluídos entre tantos outros que não são essenciais a tratamentos e configuram privilégios.

São situações que demonstram falta de bom senso e de postura ética, enquanto outras deixam evidente a má-fé, principalmente quando há provas de conluios entre o reclamante, seus defensores e os fornecedores dos medicamentos. Essa é uma engrenagem desleal que não pode continuar prosperando, sob pena de comprometer as responsabilidades do Estado na área da saúde pública. Chegou o momento de as instituições envolvidas reavaliarem seus procedimentos, para que um direito não seja desvirtuado por excessos e delitos.

NO RS, TAXA DE SUICÍDIOS É O DOBRO DA NACIONAL

ZERO HORA 20 de novembro de 2013 | N° 17620

HELOISA ARUTH STURM


INTIMIDADE NA WEB



Considerado um problema de saúde pública pelo Ministério da Saúde, o suicídio é uma das três maiores causas de morte entre os jovens no país. Enquanto o Brasil registra taxa de 4,9 casos para cada cem mil habitantes, esse índice dobra no Rio Grande do Sul. Casos como o da jovem de Veranópolis têm se tornado cada vez mais comuns, e mostram os efeitos devastadores da superexposição indevida na internet.

Para a psicóloga Carolina Lisboa, professora do programa de pós-graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), as humilhações sofridas no ambiente virtual são piores do que as que ocorrem em ambientes como a escola ou o trabalho:

– Na internet, tem essa audiência muito extensa. São milhões de pessoas, e há esse caráter atemporal, a situação de humilhação perdura no tempo. No bullying que é vida real, na escola, por exemplo, é ali no momento. Se levantam a blusa da garota no recreio, são quatro, cinco pessoas que veem e acabou. Não quer dizer que não seja ruim, mas tem um ponto final.

Cidade pequena pode agravar a pressão, afirma psiquiatra

Para o psiquiatra Daniel Spritzer, coordenador do Grupo de Estudos sobre Adições Tecnológicas, a única forma de controle para evitar uma situação dessa é não deixar que esses registros íntimos sejam feitos:

– Depois da imagem feita, já não se pode ter o controle. Hoje, com a internet, é complicado abafar uma situação dessas em qualquer lugar, porque antes poderia se trocar a pessoa de colégio, a família mudava de bairro ou de cidade. Mas hoje em dia não tem como evitar uma situação dessas, porque as pessoas estão muito conectadas.

Segundo a psiquiatra Silza Tramontina, coordenadora do Serviço de Psiquiatria da Infância e Adolescência do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), a peculiaridade de o caso ter ocorrido em uma cidade pequena, onde todos se conhecem, pode ser um agravante, mas não é um fator desencadeador. Para ela, o bullying se caracteriza pela constância e pela intensidade e pode, sim, gerar situações limites:

– Há uma exigência muito grande em cima dos jovens, de ser melhor em tudo, de não ter falhas. Hoje é o mundo dos perfeitos. Ou se é vencedor, ou perdedor. O suicídio ocorre quando a pessoa está esgotada de tanto sofrer. Em pessoas mais frágeis, uma situação como essa pode ser desencadeadora. Essa jovem já devia estar sendo incomodada há muito tempo.


PERIGO ONLINE

Pais devem ficar atentos ao comportamento dos filhos no ambiente virtual

- Se não souber usar o computador nem navegar na internet, aproveite para aprender junto com seus filhos.
- Coloque-se à disposição para que peçam ajuda quando se sentirem ameaçados ou receberem conteúdos impróprios online.

- Preste atenção aos comentários que seus filhos publicam nas redes sociais. Pelo menos dois terços das pessoas que tentam o suicídio haviam comunicado de alguma maneira sua intenção para amigos, familiares ou conhecidos em algum momento.

- Deixe que seus filhos tenham privacidade na internet. Espionar e gravar o que fazem não são boas saídas, pois isso pode fragilizar a confiança.

- Mantenha o diálogo com eles. Assim, eles poderão incorporar as dicas de segurança como proteção e não apenas como mais uma regra imposta. Quando entenderem que é para o bem deles, se sentirão protegidos em todos os lugares.

- Sempre que testemunhar algo que viole os direitos humanos ou ameace seus filhos, procure as autoridades.


OUTROS CASOS

Divulgação não autorizada de fotos e vídeos íntimos é comum na internet

NOVEMBRO - Na semana passada, a estudante Júlia Rebeca de 17 anos, moradora de Parnaíba (PI), suicidou-se depois que um vídeo seu fazendo sexo com outros dois adolescentes foi divulgado na internet. Ela deixou mensagens pelo Twitter pedindo desculpas à mãe e anunciando a própria morte.

OUTUBRO - Imagens de uma jovem de 19 anos fazendo sexo oral no ex-namorado foram divulgadas pelo whatsapp, aplicativo de mensagens instantâneas usado em smartphones. Moradora de Goiânia, ela teve de mudar de aparência e abandonar o emprego.

AGOSTO - Fotos da ex-panicat Lizi Benites fazendo sexo circularam na rede. Segundo ela, as imagens seriam montagens.


2012 - Assessora jurídica do senador Ciro Nogueira, Denise Leitão Rocha teve divulgado na internet um vídeo em que aparecia em cenas de sexo explícito.

2010 - O americano Tyler Clementi, 18 anos, se suicidou após Dharun Ravi, seu colega de quarto da universidade de Rutgers, tê-lo filmado mantendo relações sexuais com outro homem e divulgado o vídeo na rede. Em 2012, Ravi foi condenado a 30 dias de prisão e três anos de liberdade assistida.

2009 - Um vídeo mostrando momentos íntimos de uma menina de 11 anos e um garoto de 14 circulou pela internet. O caso ocorreu na pacata Ibirubá, região do Alto Jacuí. Humilhada com a repercussão do caso, a família da garota decidiu mudar de cidade.

2006 - Uma estudante de direito da cidade de Pompeia, a 474 quilômetros de São Paulo, teve divulgadas fotos nas quais aparecia fazendo sexo com dois rapazes. Em depoimento à polícia, a moça – que se afastou do curso depois de ter sido hostilizada por colegas – afirmou que o material veiculado em alguns sites era montagem.


APERTO NA LEI - Em outubro, ZH publicou reportagem especial sobre os projetos em tramitação no Congresso que estabelecem regras e punições para combater a violência contra a mulher na internet. Uma das medidas prevê a ampliação da Lei Maria da Penha, que passaria a abranger os casos de violação da intimidade via internet.

domingo, 17 de novembro de 2013

DOS CONSULTÓRIOS AOS TRIBUNAIS


ZERO HORA 17 de novembro de 2013 | N° 17617

HUMBERTO TREZZI E JULIA OTERO

A JUSTIÇA EM PÍRULAS


Com 113 mil processos em tramitação, o Rio Grande do Sul concentra 51% dos processos em todo o país envolvendo remédios ou tratamentos médicos


Um depósito com quase um quarteirão de tamanho, trancado como uma caixa-forte, armazena em Porto Alegre dezenas de milhares de medicamentos comprados pela Secretaria Estadual de Saúde (SES) para distribuir a doentes. Grande parte do dinheiro investido na compra desses remédios só sai via ordem judicial.

O depósito estatal está sempre cheio porque os gaúchos nunca reivindicaram tanto tratamento de saúde à Justiça. Os tribunais são a arena na qual pacientes, advogados, médicos e promotores se digladiam pelo destino de verbas milionárias, gerenciadas pela União, pelos 27 Estados e pelos mais de 4 mil municípios brasileiros. Com 113 mil processos em tramitação, o Rio Grande do Sul desponta como campeão nacional das ações judiciais no campo da saúde. Mais da metade dos processos envolvendo remédios ou tratamento médico, no país, tramita em território gaúcho. O número é do último levantamento do Conselho Nacional de Justiça, realizado em 2011.

Apenas no campo de medicamentos: dos R$ 316 milhões gastos este ano pela SES, R$ 192 milhões (64%) foram via judicial. Com essa verba seria possível erguer 128 Unidades Básicas de Saúde em um ano. E 306 postos desse tipo nos três últimos anos, mais da metade do número necessário para o Rio Grande do Sul, segundo a estimativa governamental.

Recorrer à Justiça é um direito. O problema é que algumas das demandas dos pacientes são polêmicas, pela duvidosa comprovação científica do tratamento requisitado ou pelo seu altíssimo custo.

Se comparado com o universo de 80 milhões de ações que tramitam por ano em todos os fóruns, não são muitos processos. Mas os valores movimentados pela saúde são milionários. Nas varas judiciais pede-se de tudo um pouco, de produtos básicos como o AAS (para dor de cabeça) até medicamentos que custam milhares de reais ao mês, como o interferon peguilado (para tratar Hepatite C). De cirurgias de menisco a tratamentos contra todo o tipo de câncer. De comidas especiais para quem tem intolerância alimentar até dietas repletas de chocolates, docinhos de leite condensado e outras guloseimas – que o advogado garante serem indispensáveis para o paciente.

Será que todos os tratamentos reivindicados à Justiça são necessários?

– Nunca se tomou tanto remédio e em doses tão exageradas – resume Leonildo Mariani, assessor técnico da Federação das Associações de Municípios-RS (Famurs), especialista em judicialização da saúde.

O mapa ao lado dá dimensão da opção dos gaúchos pelos tribunais. Estados como o Paraná, com população semelhante, soma apenas 2.609 ações. São Paulo, com seus 41 milhões de habitantes, tem 44,6 mil ações – menos da metade do Rio Grande do Sul.

O governo do Estado costuma contestar pedidos via judicial, mas na maioria das vezes acaba obrigado a financiar a demanda, num custo que, ao final, é bancado pelo contribuinte. É raro magistrados desconfiarem dos pedidos dos pacientes. Ações nem sempre são justificadas, como evidencia esta reportagem, feita em 45 dias de investigação. Alguns casos que serão mostrados nas próximas páginas:

- Médicos que cobram duas vezes ou mais o valor da cirurgia, se o processo for via judicial, porque acreditam que o Estado pode pagar mais que o cidadão comum.

- Profissionais pouco criteriosos em recomendar cirurgias, em desacordo com protocolos do Ministério da Saúde e dos próprios conselhos de Medicina.

- Pacientes que ingressam na Justiça exigindo dinheiro do Estado, mesmo podendo custear o tratamento.

- Esquemas delituosos entre fornecedores de medicamentos e intermediários de pacientes, como advogados.

O governo do Estado recebe por mês cerca de 5,6 mil pedidos de tratamento, remédios ou cirurgias via administrativa e cerca de 2 mil através de processos judiciais (os mais caros). Os gastos com a judicialização de medicamentos, na secretaria, são crescentes: R$ 141 milhões em 2011, R$ 127 milhões em 2012 e R$ 192 milhões até outubro de 2013. Um salto de 36% em dois anos – e 2013 ainda não terminou.

O rombo só não é maior porque as autoridades têm se reunido para convencer juízes a olharem com critério cada pedido, antes de serem generosos com a verba pública.


NOTA 

Dos R$ 316 milhões gastos com remédios este ano pela Secretaria Estadual de Saúde (SES),
R$ 192 milhões (64%) foram via judicial – despesa que o governo acredita que não deveria ter, mas foi obrigado a custear. Com essa verba seria possível erguer 128 Unidades Básicas de Saúde em um ano.


OS INTERESSES EM JOGO

Ninguém é contra o governo custear medicamentos e tratamentos, desde que os pedidos tenham critério.

Esta é a síntese do que pensam especialistas ouvidos por Zero Hora. O desafio é reduzir a judicialização, garantindo um bom atendimento à população.

Coordenador do Comitê Executivo Estadual do RS do Fórum Nacional do Judiciário para a Saúde, o juiz Martin Schulze ressalta que o SUS já propicia atendimento à maioria dos pacientes. Por isso, tratamentos experimentais só devem ser custeados se antes o governo financiar o básico para todos.

– Não é isso que acontece em muitos casos judicializados: gente desesperada busca na Justiça recursos milionários para tratamentos duvidosos. Outro problema é o lobby de laboratórios e indústrias farmacêuticas, que estimulam o ingresso na Justiça por produtos que não constam na lista do SUS – diz o juiz.

Se tentassem emplacar lançamento de novas drogas junto à Comissão Incorporadora de Tecnologias (Ministério da Saúde), os laboratórios teriam dificuldade e precisariam se submeter a licitações, envolvendo concorrentes e baixos preços, opina Leonildo Mariani, assessor técnico da Federação das Associações de Municípios-RS (Famurs).

– Pela judicialização, fabricantes de medicamentos conseguem vender por maior preço e sem concorrência, já que o pedido de tratamento é atendido rapidamente, via liminar.


COMBINAÇÃO QUE ENGANOU MUNICÍPIO


Com um quadro grave de hepatite C e anemia, o aposentado Rui Hendges necessita de medicamentos que custam muito acima dos seus vencimentos mensais. Morador de Arroio do Meio, no Vale do Taquari, ele ingressou na Justiça para obter os remédios. Conseguiu apoio da Defensoria Pública, que providenciou o tratamento. Tudo estaria nos conformes se a filha de Hendges, Mariela, não tivesse estranhado os valores da medicação.

Para buscar na Justiça medicamentos que não integram a lista disponível nas redes básicas, pacientes necessitam apresentar, junto à Defensoria Pública, atestado médico constatando a doença, receituário informando por quanto tempo o medicamento será usado, e três orçamentos de farmácias distintas. No triplo orçamento que Mariela passou para a Defensoria, o custo era de no máximo R$ 6 mil mensais. Já o produto que chegou ao pai dela tinha sido adquirido numa farmácia em Lajeado por R$ 8,3 mil.

– Sempre pensei que a compra do remédio seria pelo menor preço, já que o Estado é quem paga. Decidi questionar o fato, ainda mais que a compra era em outra cidade. Tudo muito estranho – relata Mariela.

O próprio juiz que autorizara a compra, João Regert, sugeriu uma investigação, que foi feita em conjunto pela Polícia Civil e pelo Ministério Público. Conforme apuração policial, a suspeita é de que o orçamento para compra de medicamentos tenha sido fraudado pelo estagiário da Defensoria Pública, um estudante de Direito. Supostamente em combinação com uma rede de farmácias de Lajeado, o preço era superfaturado, em ações movidas contra o Estado. O universitário Guilherme Pinheiro teria favorecido o proprietário da farmácia Ideal de Lajeado, Emanuel Lazzari Pinto, e a companheira dele, que administra outra farmácia da rede. A mulher foi excluída da ação, mas Guilherme e Emanuel são réus no processo criminal 08/2.13.0000913-1, que apura estelionato e fraudes. E foi proposta também ação por improbidade contra eles.

A investigação, conduzida pelo delegado João Seelig, detectou 13 processos nos quais foram adquiridos medicamentos por preço maior que o praticado em Arroio do Meio. As compras eram direcionadas à rede de farmácias de Lajeado ou as notas eram tiradas em nome da farmácia Vera, pertencente à mãe do dono da rede de farmácias lajeadenses, mas situada em outra cidade.

Conforme as investigações, o ex-estagiário e estudante de Direito solicitava três orçamentos de farmácias locais. Anexava os documentos na ação e encaminhava à defensora, que confiava no subordinado e entrava com o processo no Judiciário. Nesse momento, ocorria a suposta irregularidade.

A fraude teria ocorrido entre maio e novembro de 2012, conforme documentos apreendidos nas casas dos denunciados. A quebra de sigilo bancário mostrou que, apesar de receber salário de R$ 800 mensais, o estagiário tinha depósitos acima de R$ 13 mil na conta do banco.


PROCEDIMENTOS SOB INVESTIGAÇÃO


Em Pelotas, no sul do Estado, o Ministério Público instaurou 15 inquéritos e analisa mais de 70 cirurgias feitas mediante autorizações judiciais que estariam sob suspeita.

Dez médicos são investigados pela suspeita de manipular orçamentos para cirurgias e forçar o Estado a pagar por procedimentos valores muito acima dos custeados pelo SUS.

Em 2009, quando as cirurgias judiciais começaram a ganhar força porque o município deixou de fazer alguns tipos de procedimentos traumatológicos, o médico Bruno Madrid Francisco, um dos investigados pelo MP, orçou em R$ 8 mil uma prótese de quadril.

Dois anos depois, o mesmo médico orçou a mesma cirurgia por um preço quatro vezes maior: R$ 32 mil. O salto motivou abertura de investigação pela promotora de Justiça Rosely de Azevedo Lopes.

– Alguns médicos viram que era um ganho fácil e começaram a orçar grandes valores. Como a lei prevê que haja outros orçamentos no processo para garantir o menor valor, eles passavam para seus colegas, tudo previamente combinado – explica a promotora.

O MP também calcula que o município e o Estado tenham gasto, de 2009 até 2011, mais de R$ 1,3 milhão em decisões judiciais – o que, segundo Rosely, seria suficiente para quitar com as mais de 600 cirurgias eletivas ainda pendentes no município.

Um exemplo de como o município começou a reverter essa situação é o de uma ex-diarista de 52 anos, que recorreu à Justiça após esperar oito anos por uma prótese no joelho. Ficava desequilibrada ao caminhar, mesmo com ajuda de muleta.

Na Justiça, a paciente obteve o direito de fazer o procedimento, que seria pago pela prefeitura, com o médico Renan de Oliveira Barbosa. A cirurgia custaria, incluindo internação e honorários, R$ 32.182. Inconformada, a prefeitura recorreu e conseguiu que o mesmo procedimento, feito pelo SUS, custasse R$ 1.154.

– Quando vemos que a cirurgia pleiteada é atendida pelo SUS, encaminhamos para o SUS. Não tem porque pagar algo que a prefeitura já tem acesso – informa o gerente da assessoria técnica da Secretaria Municipal de Saúde, Nelson Martins Soares Sobrinho.

A paciente diz que não sabia que o médico pleiteado por ela cobrava tanto.

– Se um médico diz que custa tanto, eu vou acreditar, né? Não sou médica – diz.


CONTRAPONTOS

Médico Bruno Anderson Madrid Francisco - Sobre ter cobrado R$ 8 mil e, dois anos depois, para a mesma cirurgia, R$ 32 mil, somente de honorários médicos, afirma que o preço varia conforme a necessidade de cada paciente, e que embora tenha a mesma moléstia, cada pessoa pode necessitar de tratamentos distintos, dependendo de suas condições físicas. Sobre o valor do orçamento de Regina, ele também afirma que inclui no valor o acompanhamento periódico.

Médico Renan de Oliveira Barbosa - Afirma que cobrou o valor particular, que considera correto para o caso desta complexidade. Também diz que o preço inclui o acompanhamento hospitalar, auxílio cirúrgico de um colega ortopedista, curativos e consultas no consultório particular até plena recuperação pós-cirúrgica, que pode levar até um ano.


CONSULTAS SEM O PACIENTE

Zero Hora procurou os nove traumatologistas de Pelotas que estão na mira do Ministério Público. Apenas dois deles, André Guerreiro e Nelson Luiz Saab, concordaram em fazer orçamento sobre cirurgia sem examinar diretamente a paciente. A promotoria investiga Guerreiro por dois procedimentos cirúrgicos e Saab por três. Veja o que eles disseram à repórter de ZH, sem saber que estavam sendo gravados.

OS PREÇOS

André Guerreiro recomendou que a suposta paciente buscasse o orçamento de outros médicos antes de apresentar, à Justiça, o valor que cobraria em um procedimento cirúrgico para uma artoplastia total do joelho (substituição por prótese).

– Primeiro tu tens que pegar os orçamentos dos outros (médicos), se vocês querem fazer comigo (o procedimento). É para eu olhar e a gente dar um orçamento compatível (valor inferior para ser apresentado à Justiça), entendeu?

O VALOR DOBRA

No consultório de Nelson Luiz Saab, uma funcionária do médico, Luciana Moreno Baladón, disse que ele cobra R$ 50 mil na Justiça por uma cirurgia que, se fosse privada, custaria R$ 25 mil.

– Se tu for fazer um pacote com a gente, vai sair em torno de R$ 25 mil. Pacote é um pacote social, ela não vai ficar em um quarto privativo, o material é mais simples um pouquinho, não é de má qualidade. Agora, se for fazer uma cirurgia particular, ela parte de R$ 50 mil. Porque o quarto, em vez de R$ 200 vai para R$ 800. Então o que a gente faz: quando a gente faz uma cirurgia via judicial, a gente cobra o valor particular.

Questionada se a paciente realmente vai ficar em quarto privativo, após a cirurgia via judicial, cujo valor cobrado é particular, a funcionária nega:

– Eu posso até dar o valor particular, mas não é... Geralmente a gente dá um valor de um quarto semiprivativo. Quarto de boa qualidade, com duas pessoas, com banheiro, TV, ar-condicionado. O importante é o procedimento ser bem atendido – admite a secretária de Saab.

Ela promete que a diferença em dinheiro será devolvida aos cofres públicos, caso não seja utilizada.


CONTRAPONTOS

O que diz o médico André Guerreiro - O cirurgião negou combinar com outros médicos valores de cirurgias judiciais realizadas mediante autorização na Justiça. Guerreiro disse: “Na maioria das vezes o paciente vem pegar o orçamento já tendo escolhido seu cirurgião. Quando ele quer fazer (o procedimento) comigo pergunta se aceito aqueles valores, se é compatível com o que eu irei oferecer a ele.”

O que diz Luciana Moreno Baladón, secretária do médico Nelson Luiz Saab - Ela diz que o valor é maior por via judicial porque todos os envolvidos fazem um preço menor quando é pago pelo paciente. Já quando o pagamento vem de dinheiro público, o valor sobe porque é incluído o preço de uma possível nova internação ou cirurgia. O dinheiro seria devolvido à prefeitura caso não fosse utilizado.

NOTA

Em Pelotas, o MP instaurou 15 inquéritos para investigar 70 cirurgias feitas mediante autorizações judiciais
que estão sob suspeita.


BOMBOM E COXINHA DE PALMITO PAGOS PELO ESTADO


Morador de Mata, município de 5,5 mil habitantes na Depressão Central gaúcha, um menino nasceu com uma doença genética, fenilcetonúria, que costuma afetar uma em cada 10 mil pessoas.

Quando não tratada, pode resultar em atrasos no desenvolvimento psicomotor. Alguns sintomas são comportamento agitado e convulsões. O importante é o diagnóstico precoce, logo após o nascimento, pelo teste do pezinho. O tratamento é dieta, para toda a vida, eliminando alimentos de risco.

E quais os alimentos a serem evitados? Todas as carnes, leite e derivados do leite, ovos, alguns tipos de feijão, milho, grão de bico, amendoim, lentilhas, farinha de trigo, aveia, adoçantes e produtos dietéticos à base de aspartame. Assim como alimentos preparados com estes ingredientes como bolos, biscoitos e outros.

Sem dinheiro para custear tratamento ou dieta especial, os pais ingressaram na Justiça com pedido para que o Estado banque o regime alimentício do filho. O curioso é a dieta que exigiram: bolo de cenoura, bombom branco, brigadeiro branco, bife, biscoito salgado, bolinho de queijo, coxinha de palmito, croquete de cenoura, espetinho, kibe, lasanha, macarrão, pão de mandioquinha, pão de queijo, pão francês, pastel de palmito, pizza de mussarela, salgadinho de pizza, salsicha, biscoito recheado de chocolate, macarrão Rilla, farinha Rilla, brigadeiro preto, mousse de morango, pirulitos, entre outras guloseimas.

A dieta foi pedida “com urgência” e, na dúvida, a juíza Ana Paula da Silva Tolfo, da comarca da vizinha cidade de São Vicente do Sul (e que responde por Mata), concedeu o pedido. Ordenou ao Estado que bancasse a compra dos alimentos. A decisão foi tomada em 18 de março.

Em 16 de agosto, o desembargador Luiz Felipe Brasil Santos, da 8ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça, determinou a continuidade da compra de alimentos por parte do governo estadual, mas apenas de uma dieta específica e reduzida. Foi autorizada a aquisição de farinha especial, macarrão especial, 12 barras de chocolate específico para fenilcetonúricos, 10 pacotes de biscoitos específicos, quatro pacotes de mandiopã específicos para quem tem a doença, três quilos de fécula de batata e seis pacotes de gelatina de algas prontas para fenilcetonúria. Suspendeu todos os demais alimentos que não constavam em indicação médica.

Conforme o pai da criança, a lista inicial, por engano, mencionava que os produtos requisitados seriam para consumo da criança durante um mês – na realidade, eram para seis meses e em quantidade dosada. Quando o Estado recorreu, foi concedida alimentação especial. Ele explica que só tem recebido o leite especial. Zero Hora não divulga os nomes do casal para preservar a identidade do bebê, em conformidade com o Estatuto da Criança e do Adolescente.


PELO LEITINHO DA CRIANÇA


Alérgico a leite de vaca, um menino de seis meses precisa ingerir um produto especial para intolerantes à lactose. Os pais, um advogado e uma gerente de banco, ingressaram com processo no Fórum da Capital solicitando latas do nutriente, chamado Neocate. Queriam que o Estado pagasse os R$ 1,6 mil mensais – cada lata custa R$ 160 e dura três dias.

Procuradores do Estado descobriram que os pais do garoto têm dois carros que, somados, são avaliados em R$ 173 mil e residem num condomínio de alto padrão no extremo sul da Capital. As informações foram levadas em consideração pela 7ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça, que negou ao casal o direito de ganhar o leite do Estado.

– Está bastante claro que a parte autora da ação tem condições econômicas de comprar o medicamento de que necessita – pondera o desembargador Sérgio de Vasconcellos Chaves, da 7ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça.

Procurado por Zero Hora, o pai do menino afirmou:

– Independente de ser carro de luxo, calculei todas as despesas a família e não sobra grande coisa, se comprar o leite especial. As contas, mês a mês, impedem que eu possa pagar. Vou ter de cortar um carro, trocar por um veículo menor. Não acho incoerente, a gente paga tributação e não dá conta das despesas. Entendo que o Estado deveria pagar o leite ou disponibilizá-lo na Farmácia Popular. Tenho conta de estacionamento, prestação da casa.

Para a procuradora Heloísa Zigliotto, o Estado tem o dever de custear produtos ou remédios excepcionais para pessoa que não podem prover as despesas com esses medicamentos.

– O problema é que o Judiciário costuma conceder esse direito a todos, sem olhar as condições financeiras. Acaba faltando para os pobres – pondera Heloísa.

ZH não divulga os nomes do casal para preservar a identidade do bebê, como prevê o Estatuto da Criança e do Adolescente.

COMENTÁRIO DO BENGOCHEA - Fraudes com aval da justiça é algo que faz o povo desacreditar na justiça brasileira. Na maioria das vezes, estes fraudes tem apoio especialmente na burocracia que é uma das mazelas mais nocivas que contamina a confiança neste pilar da democracia. Diante dos serviços precário que sonegam direitos individuais e coletivos do cidadão e comunidades, nada mais correto estas demandas caírem na justiça. Entretanto, para sanar esta mazela e impedir decisões como estas mostradas na reportagem, a justiça brasileira precisa se sistematizar, estruturar instrumentos de investigação de cada caso, desburocratizar processos e aproximar o magistrado das questões através de audiência preliminares com as partes envolvidas.




quinta-feira, 14 de novembro de 2013

FRAUDE NO LEITE


ZERO HORA 14 de novembro de 2013 | N° 17614

ARTIGOS

Mauro Rockenbach*



Em 10 meses de investigações da Operação Leite Compen$ado, em parceria com o promotor de Justiça de Defesa do Consumidor Alcindo Bastos da Luz Filho e com a aplicação dos fiscais agropecuários do Mapa, dedicamo-nos a apurar fraudes e monitorar os caminhos trilhados pelo leite até chegar à mesa dos gaúchos.

Encontramos seis focos de adulteração, apresentamos à Justiça mais de duas dezenas de responsáveis, 10 dos quais ainda permanecem presos, apreendemos três dezenas de caminhões, fórmulas da fraude, centenas de documentos e notas fiscais.

Mas, agora, algumas considerações merecem ser feitas.

A primeira diz respeito à qualidade do produto consumido na maioria dos lares gaúchos. Segundo os laboratórios que analisaram as amostras, nos últimos meses o leite gaúcho apresenta uma qualidade como há muito tempo não havia. Isso se deve à mudança de postura das indústrias e ao cumprimento de obrigações assumidas nos Termos de Ajustamento de Conduta por aquelas que industrializaram leite fraudado. As análises passaram a ter mais rigor e o leite entregue com adulteração deixou de ser recebido.

Outro destaque é a ausência de regulamentação do transporte de leite cru da propriedade rural até a indústria. Não existe legislação com direitos e obrigações, que estabeleça fiscalização das condições dos veículos, bem como preveja sanções para o descumprimento. O Mapa diz que a obrigação de fiscalizar os “freteiros” é da indústria. Jogo de palavras! Falácia que serve apenas para esconder a incompreensível omissão da União em se debruçar sobre essa atividade que se mostra desajustada. A indústria de laticínios não deve se responsabilizar pela atividade dos transportadores, porque são dois agentes da mesma relação comercial, em que há, muitas vezes, interdependência. Ingenuidade esperar que a indústria, de um dia para o outro, recuse milhões de litros de leite que irão favorecer seu concorrente direto. Se não existe punição, a ousadia e a indecência se instalam. O maior prejudicado é o consumidor, o mais indefeso e vulnerável.

Existem inúmeras agências reguladoras para vários segmentos neste país, mas nenhuma que se preocupe com a qualidade dos alimentos consumidos pela população.

Outro ponto encorajador da fraude é a pena, entre quatro e oito anos de reclusão, além de multa, prevista no art. 272 do Código Penal, se a compararmos com a pena mínima de 10 anos prevista para a falsificação de produtos medicinais ou destinados para fins terapêuticos, que inclusive foi equiparado aos crimes hediondos. Será que deixar a população consumir inconscientemente resíduos de substância cancerígena ou de produtos corrosivos não é mais grave do que colocar farinha em um cosmético? O tráfico de drogas é equiparado aos crimes hediondos. Não retiro a gravidade desse crime, mas o traficante vende o produto que o usuário de entorpecente procura.

O consumidor vai ao comércio esperando comprar apenas leite.


*PROMOTOR DE JUSTIÇA