ZERO HORA 04/01/2015 | 23h09
Fraude provoca cirurgias desnecessárias para superfaturar próteses. Denunciado pelo Fantástico na noite deste domingo, suposto esquema envolveria cobrança ilegal por médicos e dentistas, licitações direcionadas e operações sem necessidade
por Giovani Grizotti
Foto: Reprodução / RBS TV
Um suposto esquema de pagamentos de comissões a médicos e dentistas por distribuidores de próteses e implantes, que estaria ocorrendo em cinco Estados, foi denunciado neste domingo pelo Fantástico, da TV Globo.
Para documentar as negociatas, a reportagem da RBS TV se fez passar por médico, montou consultório com autorização de um hospital e participou de congressos de medicina no Rio e em São Paulo. As comissões na suposta fraude oscilariam de 15% a 50%.
Para dar aparência de legalidade às comissões, empresas teriam pedido que os médicos assinassem contratos de consultoria. Uma delas seria a Orcimed, de São Paulo, que incluiria, na declaração de renda da empresa, comissões de até 30% aos médicos. Em conversa gravada em um congresso em Campinas (SP), o gerente da Orcimed, Milton Soto, frisou que a manobra evitaria problemas com a Receita Federal:
— O governo quer o quê? Imposto. Não discute ética. Discute grana.
Médicos e dentistas chegariam a faturar R$ 100 mil no fim de cada mês, revelou uma ex-vendedora de próteses do Rio Grande do Sul. Em 10 anos, ela trabalhou em quatro empresas. O percentual pago aos envolvidos no suposto esquema seria definido a partir de um levantamento mensal considerando as cirurgias e o material usado.
A representante comercial contou que as especialidades médicas mais “lucrativas” envolveriam ortopedia, neurocirurgia e cardiologia. Hospitais públicos também teriam sido lesados. Em um congresso de ortopedia e traumatologia no Rio, o gerente da empresa IOL, Rodrigo Souza, disse que seria possível direcionar licitações de forma que a empresa vença as concorrências. Para isso, bastaria incluir nas especificações técnicas caraterísticas que só as próteses da IOL teriam. O valor da comissão dependeria do volume:
— A única coisa que não dá para negociar é a morte — afirmou Souza.
As empresas chegariam até a propor aos médicos que incluíssem nos relatórios materiais não implantados nos pacientes. É o que sugeriu na reportagem Fernando Strehl, sócio da Strehl, de Balneário Camboriú (SC). Mas a tática só valeria para produtos não detectáveis em exames de imagem, como enxerto ósseo. Quanto maior o valor cobrado, maior seria o lucro do médico.
De olho em polpudas comissões, médicos até fariam cirurgias desnecessárias. É o que denunciou o médico gaúcho Alberto Kaemmerer. Por 14 anos, ele foi diretor do Hospital Mãe de Deus, de Porto Alegre, que criou um grupo para revisar pedidos de cirurgia – pelo menos 35% eram rejeitados por terem sido considerados dispensáveis.
No Rio Grande do Sul, o golpe incluiria falsificação para pedido de liminares judiciais
A partir de denúncia da Procuradoria-Geral do Estado (PGE), a polícia está investigando no Rio Grande do Sul um esquema entre advogados e médicos, que falsificariam documentos para propor à Justiça pedidos de liminares de cirurgias superfaturadas.
Em Gravataí, a aposentada Wilma Prates, 76 anos, pode ter sido uma vítima. Ela mal consegue caminhar devido a um problema na coluna. Ainda sofre de depressão:
— Não consigo me movimentar, pegar uma vassoura, vem a dor.
O esquema funcionaria assim: depois de esperar anos na fila do SUS, pacientes vão até os hospitais para consulta. Ali, em vez de dar o atendimento pelo sistema público, os médicos os encaminhariam a escritórios de advocacia. Com documentos falsos e orçamentos superfaturados, seriam montados pedidos de liminar para obrigar o governo a bancar as cirurgias.
Foi o que aconteceu com Wilma. O marido dela, José Prates, conta que o advogado lhe garantiu que resolveria tudo. Mas um laudo feito por médicos do Hospital de Clínicas, da Capital, indicou que a paciente correria risco de vida se fizesse a cirurgia. Com base nisso, a liminar foi negada pela Justiça.
Na ação judicial, consta que o advogado enviou à Justiça três orçamentos de médicos para que fosse escolhido o de menor valor, que foi o do ortopedista Fernando Sanchis. Procurado pela reportagem, o perito Oto Rodrigues concluiu que uma mesma pessoa assinou os três orçamentos.
O valor do material que seria utilizado na cirurgia chegaria a R$ 151 mil. Tudo seria fornecido pela Intelimed, de Porto Alegre, que supostamente pagaria comissões de até 20% aos médicos que indicassem seus produtos, segundo relatou um representante da empresa à reportagem.
Segundo a PGE, os valores que aparecem nas liminares são 20 vezes maiores do que os de mercado.
— Quem paga essa conta somos todos nós. Vai ser bloqueado o dinheiro do Estado, e esse valor vai sair para pagar um procedimento particular, que teria dentro do sistema — destaca a procuradora Fabrícia Boscaini.
Pelo menos 65 pedidos de liminar sob suspeita foram descobertos pelos procuradores no Estado. O desembargador do Tribunal de Justiça João Barcelos de Souza Júnior, que atua em alguns desses processos, fez um desabafo:
— No momento em que se encontram situações em que pessoas buscam o Judiciário para realizar uma fraude e conseguir, com isso, aferir grandes lucros, significa que o sistema está desmoralizado.
CONTRAPONTOS
O que diz o médico Fernando Sanchis
Negou que receba comissão de fornecedores de próteses, mas reconheceu que pode ter assinado laudos em nome de outros médicos, sempre “com conhecimento” do outro profissional.
O que diz a Orcimed
Em nota, a empresa afirma que a prática de cobrança ostensiva de comissões por médicos e dentistas se generalizou no mercado, mas que tem exigido desses profissionais trabalhos de consultoria, como contrapartida. Informa ainda que sofre boicote de médicos por não aceitar a prática do superfaturamento e que, por isso, deixou de fornecer material em 170 cirurgias.
O que diz a IOL Implantes
Diz que não participa de licitações em quaisquer esferas de governo e que repudia insinuações de fraude. Segundo a empresa, a conversa entre o gerente e o repórter aconteceu em ambiente informal e que não representa a opinião do fabricante.
O que a diz Strehl
A direção não foi localizada.
O que diz a Intelimed
Em nota, a empresa disse primar pela ética e que faz treinamentos regulares sobre seu código de conduta aos funcionários e representantes. Explicou que o vendedor citado na reportagem não é funcionário da empresa, mas um agente terceirizado. Por isso, observa que ele não responde pela empresa e, caso haja irregularidade na conduta do representante, adotará as medidas cabíveis.
Fraude provoca cirurgias desnecessárias para superfaturar próteses. Denunciado pelo Fantástico na noite deste domingo, suposto esquema envolveria cobrança ilegal por médicos e dentistas, licitações direcionadas e operações sem necessidade
por Giovani Grizotti
Foto: Reprodução / RBS TV
Um suposto esquema de pagamentos de comissões a médicos e dentistas por distribuidores de próteses e implantes, que estaria ocorrendo em cinco Estados, foi denunciado neste domingo pelo Fantástico, da TV Globo.
Para documentar as negociatas, a reportagem da RBS TV se fez passar por médico, montou consultório com autorização de um hospital e participou de congressos de medicina no Rio e em São Paulo. As comissões na suposta fraude oscilariam de 15% a 50%.
Para dar aparência de legalidade às comissões, empresas teriam pedido que os médicos assinassem contratos de consultoria. Uma delas seria a Orcimed, de São Paulo, que incluiria, na declaração de renda da empresa, comissões de até 30% aos médicos. Em conversa gravada em um congresso em Campinas (SP), o gerente da Orcimed, Milton Soto, frisou que a manobra evitaria problemas com a Receita Federal:
— O governo quer o quê? Imposto. Não discute ética. Discute grana.
Médicos e dentistas chegariam a faturar R$ 100 mil no fim de cada mês, revelou uma ex-vendedora de próteses do Rio Grande do Sul. Em 10 anos, ela trabalhou em quatro empresas. O percentual pago aos envolvidos no suposto esquema seria definido a partir de um levantamento mensal considerando as cirurgias e o material usado.
A representante comercial contou que as especialidades médicas mais “lucrativas” envolveriam ortopedia, neurocirurgia e cardiologia. Hospitais públicos também teriam sido lesados. Em um congresso de ortopedia e traumatologia no Rio, o gerente da empresa IOL, Rodrigo Souza, disse que seria possível direcionar licitações de forma que a empresa vença as concorrências. Para isso, bastaria incluir nas especificações técnicas caraterísticas que só as próteses da IOL teriam. O valor da comissão dependeria do volume:
— A única coisa que não dá para negociar é a morte — afirmou Souza.
As empresas chegariam até a propor aos médicos que incluíssem nos relatórios materiais não implantados nos pacientes. É o que sugeriu na reportagem Fernando Strehl, sócio da Strehl, de Balneário Camboriú (SC). Mas a tática só valeria para produtos não detectáveis em exames de imagem, como enxerto ósseo. Quanto maior o valor cobrado, maior seria o lucro do médico.
De olho em polpudas comissões, médicos até fariam cirurgias desnecessárias. É o que denunciou o médico gaúcho Alberto Kaemmerer. Por 14 anos, ele foi diretor do Hospital Mãe de Deus, de Porto Alegre, que criou um grupo para revisar pedidos de cirurgia – pelo menos 35% eram rejeitados por terem sido considerados dispensáveis.
No Rio Grande do Sul, o golpe incluiria falsificação para pedido de liminares judiciais
A partir de denúncia da Procuradoria-Geral do Estado (PGE), a polícia está investigando no Rio Grande do Sul um esquema entre advogados e médicos, que falsificariam documentos para propor à Justiça pedidos de liminares de cirurgias superfaturadas.
Em Gravataí, a aposentada Wilma Prates, 76 anos, pode ter sido uma vítima. Ela mal consegue caminhar devido a um problema na coluna. Ainda sofre de depressão:
— Não consigo me movimentar, pegar uma vassoura, vem a dor.
O esquema funcionaria assim: depois de esperar anos na fila do SUS, pacientes vão até os hospitais para consulta. Ali, em vez de dar o atendimento pelo sistema público, os médicos os encaminhariam a escritórios de advocacia. Com documentos falsos e orçamentos superfaturados, seriam montados pedidos de liminar para obrigar o governo a bancar as cirurgias.
Foi o que aconteceu com Wilma. O marido dela, José Prates, conta que o advogado lhe garantiu que resolveria tudo. Mas um laudo feito por médicos do Hospital de Clínicas, da Capital, indicou que a paciente correria risco de vida se fizesse a cirurgia. Com base nisso, a liminar foi negada pela Justiça.
Na ação judicial, consta que o advogado enviou à Justiça três orçamentos de médicos para que fosse escolhido o de menor valor, que foi o do ortopedista Fernando Sanchis. Procurado pela reportagem, o perito Oto Rodrigues concluiu que uma mesma pessoa assinou os três orçamentos.
O valor do material que seria utilizado na cirurgia chegaria a R$ 151 mil. Tudo seria fornecido pela Intelimed, de Porto Alegre, que supostamente pagaria comissões de até 20% aos médicos que indicassem seus produtos, segundo relatou um representante da empresa à reportagem.
Segundo a PGE, os valores que aparecem nas liminares são 20 vezes maiores do que os de mercado.
— Quem paga essa conta somos todos nós. Vai ser bloqueado o dinheiro do Estado, e esse valor vai sair para pagar um procedimento particular, que teria dentro do sistema — destaca a procuradora Fabrícia Boscaini.
Pelo menos 65 pedidos de liminar sob suspeita foram descobertos pelos procuradores no Estado. O desembargador do Tribunal de Justiça João Barcelos de Souza Júnior, que atua em alguns desses processos, fez um desabafo:
— No momento em que se encontram situações em que pessoas buscam o Judiciário para realizar uma fraude e conseguir, com isso, aferir grandes lucros, significa que o sistema está desmoralizado.
CONTRAPONTOS
O que diz o médico Fernando Sanchis
Negou que receba comissão de fornecedores de próteses, mas reconheceu que pode ter assinado laudos em nome de outros médicos, sempre “com conhecimento” do outro profissional.
O que diz a Orcimed
Em nota, a empresa afirma que a prática de cobrança ostensiva de comissões por médicos e dentistas se generalizou no mercado, mas que tem exigido desses profissionais trabalhos de consultoria, como contrapartida. Informa ainda que sofre boicote de médicos por não aceitar a prática do superfaturamento e que, por isso, deixou de fornecer material em 170 cirurgias.
O que diz a IOL Implantes
Diz que não participa de licitações em quaisquer esferas de governo e que repudia insinuações de fraude. Segundo a empresa, a conversa entre o gerente e o repórter aconteceu em ambiente informal e que não representa a opinião do fabricante.
O que a diz Strehl
A direção não foi localizada.
O que diz a Intelimed
Em nota, a empresa disse primar pela ética e que faz treinamentos regulares sobre seu código de conduta aos funcionários e representantes. Explicou que o vendedor citado na reportagem não é funcionário da empresa, mas um agente terceirizado. Por isso, observa que ele não responde pela empresa e, caso haja irregularidade na conduta do representante, adotará as medidas cabíveis.
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