REVISTA ISTO É N° Edição: 2223, 18.Jun.12
O Brasil tem uma boa média mundial de
profissionais de saúde por habitante. A questão é que eles estão
concentrados em poucos Estados e na rede privada
Natália Martino
MEDIDA
Para o MEC, a criação de novas vagas em faculdades de
medicina públicas e privadas irá melhorar o sistema de saúde
Ao autorizar a criação de 1.615 novas vagas em faculdades de medicina
públicas e privadas de todas as regiões do Brasil, o Ministério da
Educação (MEC) provocou uma polêmica na categoria. Segundo o MEC, a
medida irá contribuir para amenizar o problema da falta de médicos no
País. O Conselho Federal de Medicina (CFM) discorda. Segundo o órgão, a
decisão desconsidera a qualidade da formação dos novos profissionais e
se baseia na falsa premissa de que o Brasil carece de profissionais de
saúde. De acordo com a instituição, a média nacional de 1,95 médico por
mil habitantes (o MEC considera 1,8) é maior do que a mundial, de 1,4. O
número não tem sido suficiente, porém, para reduzir as filas nos
hospitais públicos nacionais e a explicação do CFM é de que os médicos
estão mal distribuídos entre as regiões brasileiras e entre as
instituições públicas e privadas.
De acordo com Maria Helena Machado, pesquisadora da Escola Nacional de
Saúde Pública da Fiocruz, o principal problema do Sistema Único de Saúde
(SUS) é a má gestão do trabalho. “Faltam políticas adequadas para fixar
os profissionais onde eles são necessários, seja no interior do País,
seja nas periferias das metrópoles”, diz. A cidade de São Paulo, por
exemplo, conta com mais de quatro médicos por mil habitantes, o dobro da
média nacional, mas cerca de 75% deles atuam na região central da
cidade. Do Complexo Hospitalar Heliópolis, dentro da maior favela da
cidade, na zona sul da capital, o cirurgião F. expõe algumas das razões
para isso. “São horas de trânsito para chegar a essas áreas, onde é
preciso enfrentar situações de violência e hospitais sucateados”, diz o
médico, que trabalha há mais de 20 anos no local. F. preferiu não se
identificar por estar sendo ameaçado de morte pela família de um de seus
pacientes, que entrou em coma após uma reação à anestesia durante uma
cirurgia de hérnia cervical. Nesses anos de trabalho em hospitais
públicos, ele coleciona histórias de violência e tensão. Em outra
ocasião, no Hospital Fernando Mauro, zona sul de São Paulo, o cirurgião
salvou da morte uma adolescente de 14 anos com um tipo grave de
meningite depois de o irmão da paciente sacar um revólver na recepção.
“Eu poderia ter morrido antes de conseguir tratá-la”, afirma. “Além de
tudo, os salários são baixíssimos e só valem a pena quando
complementamos a renda com plantões.”
"Os pacientes estão à míngua, estão morrendo.
Meu desabafo foi a gota d'água do acúmulo de estresse"
Ângela Maria Tenório, médica do Hospital Estadual Rocha Faria, no Rio de Janeiro
Para o médico e advogado Sérgio Palmeira, que lançará no segundo
semestre o livro “Direito, Medicina e Poder”, um dos maiores problemas
da categoria é o esquema de plantões. “Os médicos fazem plantões
enormes, muitas vezes de 24 horas, apesar de isso ser vetado pelo CFM, e
acham que estão se beneficiando, já que dormem no trabalho e pensam:
‘Estão me pagando para dormir’”. Essa prática possibilita, segundo o
especialista, um “equilíbrio artificial” do mercado, no qual há um
médico para três postos de trabalho, segundo pesquisa do CFM. A média
brasileira é maior do que a mundial, de 1,4 médico por mil habitantes,
mas bem mais baixa do que a de países mais desenvolvidos. Os Estados
Unidos, por exemplo, contam com 2,4 médicos por mil habitantes;
Portugal, 3,9; e Cuba, recordista, 6,4. “Se o número de vagas é o triplo
do número de profissionais, quem diz que não faltam médicos está
fazendo uma defesa corporativista por acreditar, erroneamente, que os
plantões são bons para eles. Perde o paciente, que é mal atendido”,
afirma Palmeira. Médicos de hospitais públicos ouvidos por ISTOÉ
revelaram ser uma prática comum dois profissionais pagos para trabalhar
durante as mesmas 12 horas combinarem entre si a divisão de horários –
um atuaria nas primeiras seis horas e o outro nas restantes.
O fato é que, sobrecarregados, os médicos não conseguem atender à
demanda. Na noite da quarta-feira 30 de maio, por exemplo, a médica
Ângela Maria Tenório teve uma espécie de surto no Hospital Estadual
Rocha Faria, zona oeste do Rio de Janeiro. Pelos corredores da
instituição lotada, ela gritava: “Os pacientes estão à míngua, estão
morrendo.” À ISTOÉ, Ângela disse que o hospital deveria ter uma equipe
com nove profissionais de clínica médica, mas só vem trabalhando com
quatro. Naquele dia, só ela estava presente para atender a duas
enfermarias com cerca de 130 pessoas internadas e uma unidade intensiva
com mais de dez pacientes em estado grave. “O desabafo foi a gota d’água
do acúmulo de estresse”, disse.
"São horas de trânsito para chegar às áreas periféricas, onde é
preciso enfrentar situações de violência e hospitais sucateados.
Atualmente estou ameaçado de morte pela família de um paciente"
F., cirurgião do Complexo Hospitalar Heliópolis, em São Paulo
O contexto, portanto, exige soluções muito mais complexas do que
apenas formar novos profissionais, apesar de esses serem bem-vindos.
Para Maria Helena Machado, da Escola de Saúde Pública da Fiocruz, a
solução passa por planos de carreira médica similares às de juízes
federais. “Ao passar no concurso, o profissional seria mandado para o
interior e as periferias, mas, posteriormente, poderia ser transferido
para regiões mais valorizadas, que é o que todos querem”, diz. Ela
também defende a criação de facilidades para que os médicos alocados em
regiões afastadas, como o interior da Amazônia, possam participar de
programas de educação continuada para progredir na carreira. Abrir vagas
para estudantes, portanto, não passa de uma pequena parte da solução.
Colaborou Michel Alecrim
Nenhum comentário:
Postar um comentário