terça-feira, 8 de abril de 2014

ASSIM JÁ É DEMAIS


O Estado de S.Paulo 07 de abril de 2014 | 2h 07


OPINIÃO



Uma medida aprovada pela Câmara dos Deputados altera tão profundamente o mecanismo de multas aplicadas por infrações cometidas por planos de saúde que pode tornar inócua a fiscalização dessas empresas. Como o comportamento dos planos não é propriamente um primor - tanto que o governo vem tentando enquadrá-los em normas mais rígidas para melhorar o seu desempenho -, é fácil de imaginar os prejuízos que essa medida, se transformada em lei, pode acarretar para os mais de 40 milhões de pessoas atendidas por eles.

Atualmente, as empresas operadoras dos planos são multadas por cada infração cometida, como é normal, variando as multas de R$ 5 mil a R$ 1 milhão, conforme a gravidade do caso. Um exemplo é a punição por negativa de realização de procedimento médico devido, como exame ou cirurgia, que chega a R$ 80 mil. Por 2 infrações o pagamento é de R$ 160 mil; por 3, R$ 240 mil; e assim por diante.

Na prática, com a mudança pretendida, a operadora que cometer de 2 a 50 infrações da mesma natureza receberá punição equivalente a apenas 2 delas. De 51 a 100 infrações, ela será multada como se tivesse cometido só 4. No primeiro caso, no exemplo apontado acima, a punição seria hoje de R$ 4 milhões (50 vezes R$ 80 mil) e, com a alteração feita pela Câmara, R$ 160 mil (R$ 80 mil vezes 2).

O autor dessa proeza é ninguém menos do que o líder do PMDB, deputado Eduardo Cunha (RJ), um dos parlamentares mais poderosos da Câmara, que inseriu a mudança na Medida Provisória (MP) 627, que trata de assunto que nada, rigorosamente nada, tem a ver com a saúde - a tributação de empresas no exterior. Infelizmente, esse procedimento de "pegar carona" em MP, bem conhecido e corriqueiro no Congresso, leva a tais absurdos.

A justificativa de Cunha para a mudança revela quais são os interesses que ele defende. Diz ele que o modelo atual de multas é exagerado, e explica: "Às vezes são aplicadas 200 multas no mesmo evento. É um negócio absurdo. Não pode ter 200 eventos iguais e 200 multas máximas. Não se pode fazer da multa um fator que quebre a empresa". Ora, absurdo é uma empresa cometer 200 infrações e levar 200 multas. Para não quebrar, ela que trate de não errar tanto, de respeitar a lei e de ter um mínimo de consideração com seus clientes.

Essa é a regra do jogo que o deputado Cunha quer inverter com uma sem-cerimônia desconcertante. Tão convicto, digamos assim, está ele da justeza de sua causa que fez questão de lembrar que, de acordo com sua proposta original, a mudança deveria ser permanente, o que não aconteceu porque o governo insistiu em que vigorasse só até dezembro deste ano. Evitou-se o pior, mas, como entre nós o provisório tende a se tornar permanente, isso não é lá grande coisa.

Se o governo não se esforçou o suficiente, ou então - e não é a primeira vez que isso acontece - não conseguiu dobrar, pelo menos não totalmente, o líder na Câmara do seu mais importante partido aliado, seria conveniente que se preparasse para ganhar a batalha no Senado. Ou em último caso apelar para o veto, porque essa mudança, além de ser vergonhosa, contraria frontalmente as medidas que têm sido tomadas para tornar mais rígida a fiscalização dos planos de saúde.

Uma das mais importantes foi a resolução baixada em 2011 pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), fixando para os planos prazos máximos para a marcação de consultas, cirurgias e exames. Embora seu alcance seja limitado pela capacidade da rede de atendimento disponível, que fica aquém das necessidades, essa providência tem sua utilidade. É com base nela e em queixas relativas a outros itens, como a negativa de cobertura, que a ANS tem intensificado a punição aos planos faltosos.

A despudorada medida patrocinada por Cunha e aprovada pela Câmara, se virar lei, tirará do governo o principal instrumento para melhorar a qualidade da saúde privada, pela qual - fugindo da precariedade da rede pública - milhões de brasileiros pagam caro.

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