Lisieux Eyer de Jesus
Caro professor Cerqueira Leite:
Fiquei muito ofendida pelo desrespeito aos médicos em seu artigo. Porque afirma que nós médicos somos, como um grupo, desonestos. De que raposas (nós) vigiam galinheiros (pacientes) e comem ovos com fartura.
Ensinar é um dos meus grandes prazeres. Em aulas, conferências, artigos, livros. Mais ainda na beira dos leitos, nas salas de cirurgia. Técnica sim, mas principalmente a essência mais densa, mais profunda do que eu e outros médicos fazemos. Que depende de sentir quem é o outro, decidir usando o conhecimento modificado por aquilo que se intui. O desrespeito por que passamos ultimamente ofende, porque o que fazemos está ligado ao que somos. A degradação do que somos frente aos nossos pacientes é inadmissível, insuportável.
Como a absoluta maioria dos meus colegas, nunca fui a nenhuma "gostosa" conferência com despesas pagas por companhias farmacêuticas. Já fui a muitas pagando pelo prazer de aprender mais. Sacrifiquei dinheiro de viagem de férias, carro melhor, vestido, para pagar por congressos interessantes.
Não me arrependo. Foi um prazer. Que devolvi dividindo o que trouxe das viagens: ensinei o que aprendi, usei para tratar as pessoas, quase sempre pobres. Ganhei beijo de criança, lágrima de mãe.
A escolha de medicamentos para tratar doentes é técnica e exclusiva de médicos. O assédio da indústria farmacêutica é uma tentativa de promover sua mercadoria, natural no ambiente capitalista em que vivemos. O que não é natural é pressupor a desonestidade de quase 400000 profissionais.
A indústria farmacêutica não tem simbiose conosco. Ela nos assedia. Mas a proporção de profissionais com prazeres pagos pelas farmacêuticas é pequena. É reservado a áreas lucrativas e profissionais formadores de opinião, cientistas e pesquisadores, geralmente não profissionais de assistência. Estes cientistas são obrigados, se forem médicos, a declarar em suas conferências o nível de comprometimento que tenham com a indústria. Qualquer patrocínio em congresso médico é claro, declarado. O código de ética médica proíbe aquilo de que nos acusa, professor.
Ouso dizer que a maioria dos médicos recebe os propagandistas de medicamentos com certa má vontade. Eles repetem conceitos que não compreendem e perdem o nosso tempo. As únicas vantagens --a não ser que o senhor ache que médicos são comprados com uma canetinha ou um mouse pad-- são umas amostras grátis, levadas imediatamente para o serviço público, onde gente pobre tem dificuldade de comprar remédio.
O médico não é um estereótipo cínico de Bernard Shaw, é alguém que, literalmente, sofreu a sua formação. Tem compromissos e ideias.
Não nos confunda com a indústria farmacêutica. Eles trabalham por muito dinheiro. Nós trabalhamos pelo nosso sustento e pelo nosso ideal. É bastante diferente.
As corporações médicas já tiraram do mercado uma porção de medicamentos. Verifique a história da cisaprida, e as denúncias de risco cardiológico para crianças. Os conflitos recentes quanto ao uso de Viagra e congêneres para tratar frigidez (nem preciso dizer o quanto seria lucrativo...). As discussões quanto à futilidade terapêutica em algumas situações terminais, particularmente em oncologia.
Isso tudo não tem nada a ver com o Mais Médicos. Nossa oposição ao programa é real. Contra a inserção de pessoas sem qualificação definida para tratar dos nossos pacientes. Contra a inserção de trabalhadores cubanos sem direito nenhum, sem passaporte e sem bolsa. Contra a demissão de brasileiros, substituídos por estrangeiros mais baratos. Contra a politização barata do que não tem preço: a vida e a integridade física das pessoas.
Talvez o senhor não saiba dos casos de doença respiratória para quem foi prescrito ingerir casca de banana. Ou das doses quase cinco vezes maiores do que a correta de um determinado antibiótico. Ou da prescrição pediátrica que usou medicamentos para uma criança que devia ter vários pesos diferentes, a julgar pelas posologias dos medicamentos prescritos. Ou da prescrição de um medicamento que no Brasil só é permitido para uso veterinário, em equinos.
Em resposta à sua pergunta ("Quantos dos médicos que se declaram contra o programa repudiaram ofertas de passagens e estadias em gostosas conferências? Quantos colocam o interesse da sociedade acima dos seus próprios e de sua corporação), a maioria absoluta dos médicos brasileiros jamais teve a oportunidade de recusar um convite para uma "gostosa" conferência, porque nunca recebeu um. E a maioria absoluta dos médicos coloca a sociedade no mesmo patamar de prioridade dos outros cidadãos educados deste país.
LISIEUX EYER DE JESUS, 48, doutora em ciências cirúrgicas pela UFRJ, é presidente da Sociedade de Cirurgia Pediátrica do Rio de Janeiro
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