quinta-feira, 29 de maio de 2014

INAUGURA, MAS NÃO ABRE

DIÁRIO GAÚCHO 29/05/2014 | 07h03

Hospital da Restinga inaugura dia 6, mas só funciona em julho. Solenidade ocorrerá no dia 6 de junho, provavelmente com a presença da presidente Dilma Rousseff, mas hospital começará a funcionar somente em julho


Dependências já prontas do Hospital da RestingaFoto: Divulgação / Hospital Moinhos de Vento

Eduardo Rodrigues


A fita será cortada antes da Copa, mas as portas só serão abertas para atendimento da população no começo de julho. Esta é a nova previsão de inauguração do Hospital da Restinga, na Zona Sul da Capital. Segundo a assessoria da Secretaria Estadual da Saúde, a solenidade deve ocorrer no dia 6 de junho, com a provável presença da presidente Dilma Rousseff, que estará na cidade para participar do lançamento das candidaturas de Tarso Genro, ao segundo mandato no governo do Estado, e de Olívio Dutra, ao Senado.

Custeio mensal de R$ 4,6 milhões

Na quarta-feira, representantes do Ministério da Saúde, das secretarias da Saúde do Estado e da Capital e da Associação Hospitalar Moinhos de Vento - administrador da nova instituição hospitalar - definiram o valor do custeio do empreendimento em R$ 4,6 milhões por mês. Conforme o Diário Gaúcho havia antecipado, a cota do Governo Federal será de 50% (R$ 2,3 milhões) e a outra metade será dividida entre o Estado (25% ou R$ 1,15 milhão) e o Município de Porto Alegre (25% ou R$ 1,15 milhão).

Lei Eleitoral limita ação de políticos

Além da decisão sobre o valor do custo mensal de manutenção do hospital, a agenda da presidente e candidata à reeleição, Dilma Rousseff, era outra preocupação. Como ela visitará a Capital nos dias 6 de junho e 18 de julho, a solenidade de inauguração do hospital com sua presença só pode ser realizada na primeira data. Por um motivo simples: a Lei Eleitoral proíbe o comparecimento de qualquer candidato a inaugurações de obras públicas a partir do dia 5 de julho - três meses antes do início do processo eleitoral.

Um mês para a assinatura dos contratos

No Brasil, obras públicas são inauguradas antes de funcionar e até meses depois de serem entregues às comunidades. No caso do Hospital da Restinga, há pelo menos uma explicação para o prazo de um mês para a instituição hospitalar realmente começar a atender os pacientes. Segundo a gerente médica da Responsabilidade Social do Hospital Moinhos de Vento, Gisele Nader, o período será utilizado para assinatura dos contratos de todos os profissionais e das empresas terceirizadas escolhidas para trabalhar no complexo hospitalar. Segundo ela, isto só pode ser feito quando há uma data prevista para o início do trabalho.

Saiba mais:

- A intenção é abrir novos leitos a cada 30 dias, com funcionamento a pleno seis meses após a abertura.
- Em plena atividade, serão 1,3 mil atendimentos ambulatoriais, na emergência e unidade de diagnóstico por dia.
- O Hospital da Restinga beneficiará a população do bairro e também outros do Extremo Sul (Lageado, Lami, Belém


COMENTÁRIO DO BENGOCHEA - É retrato da política do descaso e da negligência impunes e sem fiscal. Governantes e políticos que negligenciam a vida, a saúde, a segurança, a educação, a justiça e a segurança pública do seu povo não merecem mandato e nem vida pública. Infelizmente é uma cultura política no Brasil que é praticada por todos os governantes, independente de partidos e merece o repúdio social.

terça-feira, 27 de maio de 2014

EMBUSTE MÉDICO


JORNAL DO COMERCIO 27/05/2014


Edson Prado Machado



Todos concordamos que faltam médicos nas regiões inóspitas e periféricas das grandes cidades. Todos concordamos que faltam condições estruturais dos equipamentos públicos. Concordamos também que faltam leitos, vagas de UTIs, acesso a exames de laboratório e de imagem, faltam recursos para transporte especializado de pacientes e falta acesso aos serviços de urgência e emergência em qualquer cidade do País, seja nos sertões, seja nas capitais. Sabemos também que falta governo na União, nos estados e nos municípios. Sabemos que falta financiamento para a saúde, que falta gestão, que falta vontade política e que falta, sobretudo, responsabilidade para com a saúde pública.

Sabemos que, em contrapartida, sobram ao governo desculpas e desfaçatez. Sobram descompromissos e mentiras. Sobram, sobretudo, escárnio e manipulação política. Sabemos que, ao ser questionado nas ruas, o governo saiu pela tangente e ludibriou a nação, oferecendo contas e espelhos, quando pedíamos consistências e políticas. Acabou por investir o que dizia não ter, apenas para fazer propaganda do que não vai fazer. Se faltam, e faltam médicos no interior porque estão mal-distribuídos, basta selecionar e contratar regularmente através de concurso público. Ao contrário, de forma eleitoreira, criam programas irresponsáveis.

O Programa Mais Médicos nasceu com uma sobrevida reservada, fruto de uma concepção falha e inconsistente. O governo pretende suprir as vagas de médicos nos rincões e periferias com profissionais ou que estão à margem do mercado de trabalho por inconsistência técnica, ou por nacionais e ou estrangeiros que ao arrepio da lei não precisarão se submeter a ela.

Por fim, enquanto os embustes se sucedem, o Judiciário e o Ministério Público, supostos alicerces da legalidade, olham de soslaio, indiferentes aos contraventores oficiais, eximindo-se de sua responsabilidade de garantir a legalidade e a segurança jurídica da nação.

Médico

SAÚDE DE GABINETE



ZERO HORA 27 de maio de 2014 | N° 17809

ARTIGO

Paulo Argollo Mendes*




Quanto descaso, pois são justamente esses doentes que demandam cuidados mais complexos. Não é de hoje que gestores de gabinete agem para estrangular o atendimento nas pequenas localidades. No passado, o mecanismo foi a contratualização, que impôs a adesão a hospitais já combalidos pela baixa produção e remuneração. Que virem-se os hospitais, seus profissionais e a população!

A atual medida é um novo capítulo nessa asfixia ininterrupta. Sob alegação de caixa limitado (explicado pelo fato de o Estado aplicar menos de 12% da receita corrente líquida em saúde, que manda a Constituição Federal), leiloam-se verbas. É a mesma lógica institucionalizada pela estrutura insuficiente que se traduz em emergências superlotadas. Impõe-se a escolha de quem ocupará o único leito de UTI vago ou a maca no corredor, aos demais, cadeira ou colchonete no chão.

O governo estadual elegeu centros maiores para receber recursos iludindo quem esperava pelo fim da ambulancioterapia. A resolução promoverá ainda desemprego e mais barreiras à fixação de médicos no Interior, além de inviabilizar a rede local de assistência, que começa no posto ou consultório e se completa no pequeno hospital.

Postura autoritária adota o gestor que ignora essa realidade e opta pelo mais fácil: não tem verba, corta do mais fraco. O caminho deveria ser o de fortalecer os serviços, conectando-os aos demais. Ouvir as localidades prejudicadas seria um sinal de respeito. Até porque bem antes de correligionários preencherem cargos, comunidades construíram meios para cuidar da sua saúde.


*MÉDICO, PRESIDENTE DO SINDICATO MÉDICO DO RIO GRANDE DO SUL (SIMERS)

segunda-feira, 26 de maio de 2014

UTI SEM MÉDICOS

REDE GLOBO, FANTÁSTICO 26/05/2014 00h31

Fantástico percorre hospitais do Brasil e encontra UTI sem médicos. Oitenta e um por cento dos 116 hospitais visitados pelo Tribunal de Contas da União estão inadequados, revela relatório.




O Fantástico deste domingo mostrou o resultado de um estudo inédito para entender o que há de errado na saúde brasileira. Pela primeira vez, o Tribunal de Contas da União examinou a qualidade do atendimento em 116 hospitais públicos, os mais procurados pela população em todo o país. O resultado é assustador.

É assim que a saúde pública tem tratado seus pacientes.

“Eu estou com dor, desde cedo. Estou aqui desde 9h30 da manhã e até agora nada”, disse uma paciente.

Faltam enfermeiros e médicos.

“Como é que não tem pediatra num hospital desses, para atender uma criança no hospital, desmaiando?”, questiona outra paciente.

“Não tem médico na UTI. São vários plantões em que não há medico na UTI”.

Faltam equipamentos para exames. E faltam remédios.

Fantástico: E quando não tem o antibiótico, como faz?
Médico: Você conhece o "seguro senhor do Bonfim"? A gente amarra uma fita do lado e vai.

Os repórteres do Fantástico foram aos hospitais para conferir o resultado de um relatório recente do Tribunal de Contas da União sobre a saúde brasileira e confirmaram: falta quase tudo na rede pública e sobra desorganização.

No Pronto Socorro Municipal de Cuiabá, encontramos Dona Alaíde, de 62 anos. Ela tinha no cérebro dois aneurismas - que é quando um vaso sanguíneo incha muito. Ele pode estourar e provocar uma hemorragia. Um deles já tinha se rompido e ela quase não conseguia falar.

“Dá pra dar todo dia a dor”, desabafa Dona Alaíde.

O repórter Eduardo Faustini acompanhou a luta de Dona Alaíde em busca de tratamento.

Fantástico: Ela está com aneurisma?
Elaine da Silva, filha de Dona Alaíde: Isso
Fantástico: Há quanto tempo?
Elaine: Desde o dia 12 de abril.
Fantástico: Dia 12?
Elaine: Isso, de abril.

O caso é muito grave. No relatório médico, do dia 22 de abril, o médico alerta para o risco de morte. Duas semanas depois, repete o aviso, desta vez em letras garrafais. Dona Alaíde pode morrer. A esperança é uma cirurgia.

A filha conseguiu na Justiça uma decisão liminar que obriga o hospital a realizar o tratamento.

“Entramos com a liminar, no centro de regulação já foi liberado, mas no Hospital Geral, o Estado não está pagando, então é uma situação muito difícil”, disse a filha Elaine.

Esta é uma situação comum em Cuiabá e em vários outros pontos do Brasil. Muitos pacientes só conseguem tratamentos por força de liminares, mas nem todos. Mesmo com uma decisão judicial na mão, essa mulher não conseguiu uma cirurgia para a mãe, que está com uma veia entupida na perna.

“Ela pode perder a perna. Tem vezes que ela toma até três morfinas por noite. E o médico falou que é perigoso tomar muita morfina e o coração não aguentar”, contou Perpétua Socorro, filha de dona Aparecida.

“Essa liminar foi dada dia 22 que o juiz determinou fazer a cirurgia, de abril. Está até aqui, está citando que o Estado tá pagando R$ 20 mil de multa ao dia e não foi cumprido, a liminar, e a minha mãe está nessa situação”, destaca a filha.

Segundo o relatório do Tribunal de Contas da União, encontrar a emergência lotada se tornou comum, no Brasil. Até no Distrito Federal, que tem o maior número de médicos por habitantes do país.

“Uma fraqueza que não estou aguentando nem ficar de pé, chego a estar tremendo de fraqueza” destaca uma paciente no Hospital Regional da Asa Norte, em Brasília.

“Minha tia tem deficiência, nem ela que tem prioridade não está sendo atendida”, conta uma estudante.

De acordo com o estudo do TCU, na maioria dos hospitais, as emergências estão sempre superlotadas, sempre.

“Eu estou com dor, desde cedo. Estou aqui desde 9h30 da manhã e até agora nada. E é porque eu recebi isso aqui, que é urgência”, desabafa uma paciente.

“O pessoal está comentando aí que só tem um médico pra atender hoje à tarde”, conta outra paciente.

Médica de folga trabalha para ajudar pacientes
Uma médica, de folga, veio acompanhar um tio doente, quando viu a situação, decidiu trabalhar.

Médica: Está faltando médico. E familiar me ajudando a fazer o procedimento. Familiar me ajudando como um técnico auxiliar de enfermagem porque não tinha ninguém para me ajudar.
Fantástico: Como senhora se sente?
Médica: Desesperada pelos pacientes, porque eles são os que mais sofrem.

A falta de médicos, enfermeiros e técnicos de enfermagem é um problema crônico. Em 81% dos hospitais visitados pelo TCU, os administradores reconheceram que há menos profissionais do que seria necessário para atender a todos os pacientes que procuram atendimento.

“81% é muito alto para receber a população brasileira, carente, que necessita de um atendimento com dignidade”, destaca o presidente do TCU, Augusto Nardes.

UTI sem médicos
Um médico que preferiu não se identificar faz uma revelação assustadora. A UTI do maior hospital de Cuiabá chega a funcionar sem médicos. Vamos repetir: uma unidade de tratamento intensivo funciona sem médicos.

“São vários plantões em que não há medico na UTI. É como estar num avião sem piloto”, disse.

A Prefeitura de Cuiabá nega a acusação, mas o repórter Eduardo Faustini teve acesso a oito comunicados internos, dos últimos três meses, avisando a direção do hospital sobre períodos em que a UTI ficou sem médico algum.

“Não foram nem um nem dois casos de pacientes que poderiam ter saídos vivos das UTIs do pronto-socorro e não saíram. Saíram mortos. Porque eles não tiveram o cuidado adequado. Isso acontece frequentemente”, conta.

O médico diz que recebe orientações do hospital para mentir sobre a hora da morte do paciente.

“A família vai chegar na hora da visita, 'o Sr. diz que morreu um pouquinho mais tarde pra família não desconfiar que morreu num plantão sem médico'. Eu não mudo o horário do óbito porque isso ultrapassaria a minha capacidade de ser conivente com essa situação dentro do pronto-socorro”, confessa.

Segundo o relatório do TCU, o problema fica ainda mais dramático quando os profissionais faltam ao plantão.

“Eu estou com meu neto passando mal. Como é que não tem pediatra num hospital desses, pra atender uma criança passando mal, desmaiando?”, questiona uma paciente no Hospital Regional do Gama.

O pediatra apresentou um atestado médico para não trabalhar e não havia substituto para cuidar da criança.

“Eu chorei mesmo, me ajoelhei nos pés dele chorando, pedindo ajuda. ‘Ajuda uma mãe que está angustiada, porque meu filho está morrendo ali fora e vocês não querem me ajudar’”, desabafa a mãe de Ismael.

Ismael entrou em coma profundo e foi transferido. Ele se recuperou, mas em outro hospital.

Há menos leitos do que seria necessário, diz TCU
Segundo o Tribunal de Contas da União, na maioria dos estados, há menos leitos do que seria necessário. E para piorar, entre janeiro de 2011 e agosto do ano passado, a rede pública de saúde perdeu 11.576 leitos, são doze leitos fechados por dia, ou um a cada duas horas! E os técnicos ainda encontraram 2.389 leitos interditados por razões como falta de profissionais e equipamentos.

Médico: Aqui tinha como ser mais dois leitos, aí serve de depósito.
Fantástico: Por que, cara? Por que isso?
Médico: Porque não tem funcionário. Não tem funcionário, não tem cabo, não tem monitor, só tem o espaço físico mas não tem o leito em si de UTI. Não tem técnico de enfermagem suficiente para tomar conta. Aqui seria outro também. Outro leito. Outro espaço.
Fantástico: E não funciona?
Médico: Não.

Quando o hospital não tem condições de operar todos que precisam, os pacientes se acumulam nas salas e nos corredores, à espera de uma vaga. Homens e mulheres dividem o mesmo espaço.

“As mulheres, as senhoras mesmo usam fralda, entendeu? Na hora de trocar fralda, fazer a higiene das mulheres, é junto com homens, todo mundo olhando, é uma falta de respeito, gente”, conta uma mulher.

Fantástico: Quanto tempo tem que o senhor está aqui?
Paciente: Está com 11 dias.
Fantástico: Onze dias? No corredor?
Paciente: No corredor.

“Pelo menos estão em macas, macas confortáveis”, disse secretário de saúde do DF

“O que vocês viram foram pacientes em macas. Fora do local onde deveria ser, mas dentro do ambiente hospitalar com toda assistência. Pelo menos estão em macas, macas confortáveis - não são desconfortáveis - dentro do hospital sendo atendidos”, disse o secretário de saúde do Distrito Federal, Elias Miziara.

Falta equipamentos no maior hospital de Salvador
Um paciente, em estado grave, no maior hospital de Salvador, aguarda há mais de um mês a marcação de um exame na cabeça.

Fantástico: E qual exame ele tá precisando?
Homem: Ressonância magnética
Fantástico: Ele tem o quê?
Mulher: Hemorragia cerebral.

“Olha, um paciente que teve um sangramento, uma suspeita de sangramento cerebral, que em qualquer lugar do mundo seria um paciente abordado de imediato porque se for um aneurisma, por exemplo, e ele romper, o paciente morre”, conta o médico Djalma Duarte.

Fantástico: E por que não é feito isso?
Djalma Duarte: Porque não tem o aparelho. O aparelho não existe lá.
Fantástico: No maior hospital de Salvador não tem uma ressonância?
Djalma Duarte: Não, na maior emergência da Bahia não tem esse.

Em 85% dos hospitais visitados pelo TCU, os administradores disseram que a estrutura física das unidades não era adequada. E em 77% dos hospitais falta algum tipo de equipamento. Em 23%, eles não foram instalados e muitas vezes ficam encaixotados no corredor, como no hospital Clériston Andrade, em Feira de Santana, na Bahia. O tomógrafo, usado para examinar o cérebro, não funciona.

O tomógrafo novo já chegou, mas está em uma caixa, no canto de um corredor.

Funcionário: O outro está na caixa pra ser instalado, mas precisa de uma sala mais ampla. É um aparelho mais potente, maior.
Fantástico: Tem cinco meses que chegou?
Funcionário: Já deve ter.

A secretaria estadual de saúde da Bahia diz que começou o processo de licitação da sala, mas ainda não tem previsão de quando o aparelho novo vai começar a funcionar.

Faltam remédios na rede pública
Também faltam remédios na rede pública brasileira. Em quase 80% dos hospitais, atendimentos já foram cancelados por falta de medicamentos ou materiais básicos como seringas e esparadrapo. E por que isso acontece? A maioria absoluta dos administradores aponta falhas no processo de compra como o motivo mais comum.

Seja em Brasília.

“Nós temos dois pacientes internados com endocardite grave e não temos nenhum antibiótico de escolha pra tratar esse tipo de infecção”.

Ou em Cuiabá.

Fantástico: Sulfato de magnésio.
Funcionários: Também, não tem mais. Não tem mais. Melhor perguntar o que não tem, né? Não chegou nada.

Ou em Feira de Santana, na Bahia.

Fantástico: E quando não tem o antibiótico, como é que faz?
Médico: Você conhece o "seguro Senhor do Bonfim"? A gente amarra uma fita ali do lado, meu irmão, e vai.

Paciente consegue liminar para ser atendida, mas hospital não faz cirurgia
Lembra de Dona Alaíde, que mostramos no início desta reportagem? Ela tinha conseguido uma liminar para ser operada, mas o hospital não fez a cirurgia. Na última quarta-feira, o outro aneurisma que tinha no cérebro se rompeu. E ela morreu no dia seguinte. No velório, a tristeza da filha, que lutou durante 40 dias para salvar a vida da mãe.

Em nota, a Secretaria de Saúde de Cuiabá diz que a paciente fez o exame de angiografia exigido pela Justiça. Quanto à operação, também exigida pela Justiça, a secretaria diz que ela já estava agendada, mas que, antes disso, infelizmente, Dona Alaíde veio a falecer. A secretaria não informa, no entanto, quando Dona Alaíde seria operada.

O Conselho Federal de Medicina diz que para salvar os pacientes, o principal é melhorar muito a administração da saúde pública.

“Mais saúde depende de maior financiamento, melhor gestão administrativa, mais capacitados médicos e um bom sistema nacional de controle e avaliação. Infelizmente, a vontade política ainda não foi suficiente para a implementação desses parâmetros fundamentais à mais saúde”, disse o vice-presidente do CFM, Carlos Vital.

Procurado pelo Fantástico, o Ministério da Saúde diz que está contratando mais profissionais. E aumentando ano a ano o valor gasto em saúde para enfrentar esses problemas.

“O principal fator de redução do número de leitos no Brasil é a mudança do modo de atendimento das pessoas. É uma tendência mundial que cada vez mais seja o ambulatório e, não o hospital, o principal ponto de atendimento das pessoas. Reconhecendo que alguns hospitais têm situações muito críticas, principalmente os grandes hospitais de urgência, ele tem desenvolvido um programa específico que hoje já chegou a 28 hospitais do país, que é o SOS Emergência. A nossa expectativa é que nós possamos construir um sistema público, cada vez de melhor qualidade, com a melhor capacidade de resposta pro conjunto da população”, disse o secretário de atenção à saúde, Fausto Pereira dos Santos.

Longe dessa discussão, Maria de Lourdes, de 66 anos, enfermeira aposentada, agora só pensa na própria saúde. Cuidou de pacientes a vida inteira. Mas hoje é ela quem precisa de cuidados. Depois de um câncer, passou a ter sangramentos no estômago. E só um tratamento pode salvá-la. Assim como Dona Alaíde, ela também tem uma liminar da Justiça na mão.

Fantástico: Isso começou em setembro?
Maria de Lourdes: Em setembro. Vamos ver se eu ainda vou aguentar esperar, né. Porque cada dia eu estou ficando mais debilitada. Imunidade lá em baixo. Tivessem me operado, tivesse feito alguma coisa, hoje eu estaria boa.
Fantástico: E o futuro, o que a senhora espera?
Maria de Lourdes: Deus.

O TCU enviou o relatório ao Ministério da Saúde e a vários outros órgãos públicos. A intenção é que esse seja um passo importante para resolver os problemas que o Fantástico mostrou nesta reportagem. 150 milhões de brasileiros dependem exclusivamente do SUS para cuidar da saúde.

domingo, 25 de maio de 2014

RS REGISTRA QUEDA SIGNIFICATIVA NAS DOAÇÕES DE ÓRGÃOS

CORREIO DO POVO 24/05/2014 17:24

Jéssica Mello / Correio do Povo

RS registra queda de 33% nas doações de órgãos. Estado foi líder nacional durante 20 anos e agora ocupa 8º lugar




Barros (E) faz campanhas após receber coração. Na equipe, estava Plabo Py, então residente e também transplantado. Crédito: Mauro Schaefer


O Rio Grande do Sul registrou queda de 33% nas taxas de doação de órgãos no primeiro trimestre de 2014. O Estado, que permaneceu durante 20 anos como líder nacional, é o oitavo, de acordo com a Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO). A negativa de familiares de pessoas com morte cerebral é de 47%. No RS, a taxa de proibição foi de 45% em 2013, conforme dados da Secretaria Estadual da Saúde.

Para o diretor-presidente do Instituto de Cardiologia do RS, Ivo Nesralla, falta conscientização da população da importância do ato, pois algumas pessoas ainda têm dúvidas sobre o processo. “Quem atesta o óbito são neurologistas a partir de diversos exames e não a equipe de transplantes. Há um exame, por exemplo, que visualiza a falta de sangue no cérebro, o que determina a morte cerebral”, explica. Apenas depois do diagnóstico, da entrevista com a família para a autorização e de testes para saber sobre a compatibilidade e saúde dos órgãos é que a equipe de transplantes recebe o aviso.

O diretor médico do Hospital Dom Vicente Scherer, da Santa Casa de Porto Alegre, José Camargo, cobra participação do governo em ações de conscientização em escolas e com diversos públicos. “Nos dois últimos governos estaduais não há interesse com a causa para a realização de campanhas efetivas e permanentes de doação de órgãos.” Para Camargo, a revolta e a dor não combinam com a generosidade, por isso o tema tem de ser debatido antes entre as famílias. “O governo deveria impor que o assunto fosse abordado nas escolas para que seja criada, desde cedo, uma cultura de doação. Quando ela existe, a doação de órgãos se torna algo natural”, argumenta.

A coordenadora da Central de Transplantes do RS, Rosana Nothen, acredita que o governo está investindo em campanhas e, principalmente, na qualificação dos profissionais envolvidos no processo para torná-lo mais rápido. “Temos a certeza de que a educação é mais importante para mudanças comportamentais do que campanhas, pois o efeito delas é temporário”, avalia. Para ela, a negativa familiar é consequência da mudança cultural. “A não autorização está relacionada ao momento social que vivemos de individualismo”, diz.

A fim de combater essa barreira e esclarecer as dúvidas sobre doação de órgãos, Erni Sebastião Barros, 52 anos, depois de receber um coração de um jovem de 18 anos há um ano e nove meses, passou a fazer campanhas em Rio Pardo, onde mora. “Eu jurei no dia que saí do hospital que iria levar informação sobre o tema para ajudar quem está esperando”, conta Barros, que ficou sete meses na expectativa do transplante, após passar por procedimentos de ponte de safena e stent. Durante a captação do órgão e transplante, o médico Pablo Py, do Instituto de Cardiologia, na época residente, anunciou após quatro horas de cirurgia que também era transplantado de coração. Atualmente, são dez anos desde a sua operação, quando tinha 23 anos. “Foi por causa do meu problema que escolhi a cardiologia e acho que por ter passado por isso, a aproximação com os pacientes é mais fácil”, relata. Já participou de outros três transplantes com a equipe do médico Paulo Prates, que o operou.

Lista de espera

Rim: 981
Fígado: 154
Pulmão: 61
Coração:16
Pâncreas/Pâncreas-Rim: 20
Fígado/Rim: 3
Córnea: 125

* Dados de 19 de maio, da Central de Transplantes do RS

Pulmão é o primeiro que se perde

Segundo a Associação Brasileira de Transplante de Órgãos, há 61 pessoas na lista de espera por pulmão. O cirurgião José Camargo informa que o órgão é o primeiro que se perde. O transplante deve ser feito até seis horas após o óbito. Segundo o médico, a média de espera por esse órgão é de dez meses. “Quando o paciente entra na lista a expectativa de vida é de dois anos”, ressalta.

Sofrimento duplo para Fernanda



Com a doença rara linfangiomatose, a dona de casa Fernanda Silva Rocha, 38 anos, sentia muita falta de ar e com o tempo precisou usar oxigênio durante 24 horas. Teve o pulmão afetado pela doença e precisou entrar para a lista de espera para receber novo fôlego. Permaneceu por quatro meses na expectativa de vencer a etapa. “É uma luta diária com muita ansiedade para conseguir viver normalmente.” Na época, as filhas tinham 9 e 15 anos e ficaram assustadas com a situação. Em 2007, fez o transplante, mas após dois anos houve rejeição. Uma bactéria atingiu seu novo órgão.

Isso é comum, segundo o cirurgião torácico José Camargo, pois o órgão fica continuamente em contato com o meio externo devido ao processo de respiração. “Fiquei cinco meses na UTI. Perdi um rim e estive em coma”, relembra Fernanda. Outro transplante foi feito. “Em agosto fará três anos e hoje estou 100%”, comemora. Hoje o sentimento é de gratidão pelos médicos e pelos doadores.

Médico na esperança de novo coração


Há um mês na lista de espera para receber novo coração o médico José Carlos Rosa Delfini, 58 anos, sente ansiedade na sua única possibilidade de voltar a exercer sua profissão e ter uma vida normal sem cansaço. “Eu preciso de um doador. Essa é minha única chance de viver.”

Há oito anos teve três infartos e problemas no pulmão, pois até um ano antes fumava de três a quatro carteiras ao dia e mantinha um ritmo acelerado, trabalhando em diversas instituições perto de Camaquã, onde reside. “É muito difícil um médico parar. Estou sempre me lembrando das minhas atividades pela movimentação na rua ou ao escutar uma sirene.”

Delfini está com diabetes e passou a tomar 23 comprimidos/dia. No último ano começou a sentir palpitações e falta de ar. Necessitou implantar um marca-passo. “Às vezes bate uma tristeza por achar que as coisas não darão certo, em outros momentos penso que tudo ocorrerá bem.” Ele encontra força na esposa Vera e na filha Giovanna.



domingo, 18 de maio de 2014

INCÊNDIO EM HOSPITAL SEM PPCI



ZERO HORA.Atualizada em 17/05/2014 

por Adriana Irion, de Osório


Hospital de Osório não tem alvará do Corpo de Bombeiros. Conforme o comandante-geral dos bombeiros, novo PPCI da instituição está sob análise após obras de ampliação


O comandante-geral do Corpo de Bombeiros do Estado, coronel Eviltom Pereira Diaz, confirmou que o Hospital São Vicente de Paulo — evacuado na manhã desde sábado após sobrecarga de gerador — não tem alvará de prevenção e combate a incêndio. Conforme o coronel, os bombeiros realizaram uma vistoria no ano passado, e a instituição possuía os itens mínimos exigidos, como extintor, iluminação de emergência e saída de emergência.

Ainda conforme o comandante-geral, como o hospital fez obras aumentando em 20% sua área, o novo Plano de Prevenção e Combate a Incêndio (PPCI) ainda está sob análise dos bombeiros.


O incêndio começou por volta das 10h da manhã deste sábado. O estouro de um transformador de rua, localizado na esquina da instituição, teria provocado o incidente. Com a explosão, a energia elétrica da região caiu, e o gerador da instituição foi acionado — e acabou sobrecarregado. Foram registrados pelo menos dois focos de incêndio: no setor de informática, no segundo andar, e no setor de raio-X, no térreo.

Em função do incidente, o prédio teve de ser evacuado e todos os pacientes foram transferidos para unidades de saúde do Litoral Norte e de Porto Alegre. Conforme o governo do Estado, cerca de 70 pacientes com diferentes graus de gravidade estavam internados no hospital.

O incêndio começou logo após a visita de Tarso Genro ao local. O governador, que visitava o município de Osório na manhã deste sábado cumprindo agenda do programa de Interiorização, estava com sua comitiva no estacionamento do hospital no momento da explosão, a cerca de 50 metros de distância do transformador que estourou. Segundo a assessoria de imprensa do Piratini, o governador e a comitiva deixaram o local com a intenção de não prejudicar o trabalho de remoção dos pacientes.


A ROTINA DE LUTA CONTRA A MORTE NA EMERGÊNCIA DE HOSPITAL

ZERO HORA 17/05/2014 | 17h01

por Humberto Trezzi

A rotina de luta contra a morte na emergência do Hospital Cristo Redentor. ZH acompanhou dois plantões em uma das principais instituições da rede hospitalar de Porto Alegre




Foto: Bruno Alencastro / Agencia RBS


Existem locais em que só se entra por necessidade — onde furar, cortar e outros verbos aparentemente nocivos significam salvar. É o caso do Hospital Cristo Redentor, especializado em pronto-socorro. ZH testemunhou dois plantões de 12 horas para revelar a rotina do HCR, um dos hospitais públicos mais sobrecarregados de Porto Alegre — acolhe a Zona Norte, a mais populosa, e vem recebendo feridos do Centro e da Zona Sul, pois a outra instituição da Capital voltada para casos urgentes, o HPS, está em reformas. Com 547 atendimentos e 17 cirurgias por dia, o Cristo Redentor é o endereço da emergência — a recomendação é de que não seja procurado para situações menos graves, como dedos quebrados e tornozelos torcidos. Ali, a principal missão é resgatar vidas em risco.

ZH visitou o HCR à noite, quando o movimento fica mais intenso: as pessoas correm, as ambulâncias uivam, geme-se em alto volume e reza-se em voz baixa. Trabalhar lá não é para qualquer um. Além da destreza para costurar músculos com nylon, massagear corações e soprar para devolver a vida, o profissional da área precisa desenvolver uma espécie de carapaça emocional. O tempo é curto para que cirurgião, médico intensivista e enfermeiros se envolvam com os pacientes, até porque, não raro, o ferido está desacordado ou no limiar da morte. A prioridade é salvar; depois se pergunta o quem, o quando, o onde — embora muitos médicos já saibam de antemão: quase todos os que chegam ao HCR são vítimas da guerra urbana, não apenas aquela que opõe criminosos, policiais e cidadãos comuns, mas também uma outra que é igualmente violenta, aquela que tem o trânsito como cenário.

Nas próximas páginas, você conhecerá o cotidiano de um lugar onde os casos são tão críticos que o ritmo de médicos e enfermeiros precisa ser incessante — a ponto de surpreender quem está habituado a hospitais: quase não há filas. Não há tempo a esperar.

O começo do longo plantão

São 19h30min de sexta-feira, dia 2 de maio. Um grupo de enfermeiros se reúne em torno de uma cama na Ala Vermelha do Hospital Cristo Redentor (HCR). Eles lutam contra o tempo. Tentam evitar que terminem ali, na frente deles, os 14 anos de existência do menino que acaba de chegar, esvaindo-se em sangue.

O garoto levou uma facada no coração — durante uma banal discussão em partida de futebol na Vila Safira. Ninguém pergunta detalhes, isso é tarefa de assistente social. Os enfermeiros são supervisionados por Márcio Pasa, cirurgião vascular que chefia o plantão nessa noite que recém começa. Será uma das 17 cirurgias realizadas a cada 24 horas nesse hospital de pronto-socorro.

Foto: Guilherme Santos, Agência RBS

Enquanto aguardam a chegada de um cirurgião torácico, chamado às pressas, os enfermeiros lidam com o tamponamento, uma das piores emergências médicas: o sangue derramado se acumula no saco que protege o coração, o pericárdio, aumentando a pressão sobre o músculo cardíaco, que começa a bater de forma irregular, até parar. Longe do hospital, pode-se dizer que seria morte certa. No Cristo Redentor, o procedimento é rotina: os enfermeiros enfiam uma agulha de ponta rombuda no peito do guri e, com esse furo, fazem com que o sangue saia do pericárdio, permitindo que a pulsação volte ao normal.

Vencida a primeira batalha, no salão do andar térreo, em uma cama dura e sem enfeites (que mais parece uma maca), é preciso fechar o ferimento no coração, para estancar a hemorragia, que pode ser fatal. O paciente é levado na cama de rodinhas ao terceiro andar, onde Pasa, o cirurgião vascular, entrega o caso para o colega Vitor Cachoeira, especializado em tórax. Cachoeira opera há 32 anos no Cristo Redentor, em uma sala esterilizada e dotada de aparelhos de reanimação. A situação é gravíssima. O coração do menino ameaça parar duas vezes, os enfermeiros massageiam o peito para evitar. Tudo isso no corredor do prédio, com a cama deslizando sobre as rodinhas.

Já na sala cirúrgica, Cachoeira abre o peito do rapaz com um bisturi, afasta as costelas com um fórceps e vê o alvo: um corte de dois centímetros no músculo cardíaco, provocado pelo pontaço da faca. Tem de operar com o coração batendo, algo incrível para um leigo, mas habitual para esse médico. Em minutos, passa um fio de nylon no músculo cortado. Os pontos foram inventados por ele e têm até seu nome nos livros de medicina — o nó "cá entre nós, Cachoeira", semelhante a um nó de marinheiro. O ferimento parece simples, um pequeno rasgão, mas, se não suturado, o paciente morre, explica o médico. É o chamado Código de Emergência Cirúrgica, que não se resolve em posto de saúde. Costurado o coração, o peito é fechado e o garoto, transferido para a UTI.

— A diferença entre nós e o mecânico é que mexemos nas peças com o motor ligado — brinca, agora relaxado, Cachoeira, que já foi massagista do Clube Esportivo Atlântico de Erechim e ainda vive naquela cidade, deslocando-se para a Capital nos plantões de fim de semana e feriados no HCR. Ele é marido de médica e pai de um filho e uma filha que também abraçaram a medicina.

Complicado, mesmo, é quando há dois pacientes graves. A prioridade é de quem já está "aberto", na mesa cirúrgica. O outro espera. Escolhas de Sofia são rotina em um hospital de trauma. Mas, pelo menos nesta noite, Cachoeira pode operar com calma.

E o menino? Até o amanhecer, continuava vivo, o que já é uma vitória diante de seu quadro clínico.

Depois da emergência, é necessário cuidar de outro inimigo invisível e não menos mortal para qualquer paciente, a infecção. A gravidade do ferimento é tamanha que as perguntas óbvias para quem se interna num hospital — nome, endereço, profissão — são postergadas. Kelvin Silveira (eis a sua identidade) é mais um adolescente negro e pobre vitimado em uma das guerras da periferia de Porto Alegre. Desta vez, a vida venceu: Kelvin recebeu alta na última segunda-feira, liberado para voltar às aulas da 8ª série e acalentar seu sonho de jogar no Inter.

Convivendo com a dor

A ambulância do Samu de Montenegro deixa no Cristo Redentor um idoso que levou um tombo de bicicleta e, agitado ao extremo, não fala coisa com coisa. O sintoma é de concussão cerebral, causada por provável fratura no crânio. Varlei, o paciente, exala cheiro de aguardente e não para na cama, tentando se levantar a todo instante. Com dores nas costelas, que também parecem fraturadas, intercala ai-ai-ais com xingamentos.

— Olha meu braço, sua filha da puta. Cadela, tira a mão de mim! — grita, com voz enrolada, o paciente, que ainda belisca uma das enfermeiras.

Elas estão acostumadas e respondem com calma e educação:

— Vamos tirar um raio X, meu amor. Te aquieta um pouco.

Sedativo injetado na veia, Varlei se acalma e dorme. Atado à cama com panos, para não fugir.

É hora do próximo caso, que não tarda a chegar.


Gritos são rotineiros, mas todos se condoem quando os lamentos vêm de uma criança. Enderson da Costa Martins, 10 anos, é o paciente das 21h. Atropelado por um ônibus no bairro Mário Quintana, onde mora, apresenta fratura no fêmur direito e no crânio. Fala sem parar, sintoma de chacoalhão no cérebro. A mãe, a auxiliar de cozinha Magali da Costa, luta para que se acalme. Pega na mão do guri, acaricia a cabeça. Um raio X mostra que a fratura é superficial, e o garoto parece não correr risco. Magali diz que o filho atravessava a rua correndo e não reparou na manobra do ônibus — felizmente, em velocidade baixa.

Hora de realinhar o fêmur. Para consolidar o maior osso do corpo humano, é necessário esticá-lo na posição correta. O médico Marcelo Casado, residente em traumatologia, aplica morfina em Enderson, que permanece acordado, mas deixa de sentir dor. Aí é o momento mais difícil: esticar a perna do garoto a partir do calcanhar e mantê-la imobilizada. O médico saca uma espécie de furadeira, coloca na ponta dela um grande pino de metal e perfura o osso da perna, até aparecer a haste do outro lado. O barulho parece o de uma broca de dentista — só que o aparelho tem o tamanho de um secador de cabelo. Praticamente não há sangue, porque só foram perfurados osso e pele. A partir do furo é possível prender a haste em fios que imobilizarão a perna de Enderson na mesma posição, vital para que a fratura se consolide. A mãe permanece a noite toda ao lado de Enderson, de mãos dadas com ele.

Os enfermeiros tiram a atadura do braço direito de um rapaz de 25 anos que foi ao hospital após brigar com a mulher e socar a vidraça de uma porta. O sangue começa a espirrar feito mangueira furada. O corte é da espessura de um dedo, a hemorragia não cessa, tendões aparecem em meio ao rasgão.

É caso para uma (bem-sucedida) cirurgia, mas nada que se compare à situação de um paciente internado desde quarta-feira.

Naquele dia, um homem de 40 e poucos anos desceu de uma ambulância e entrou caminhando no hospital, com uma faca encravada na região dos rins. Sua mulher teria enterrado os 30cm de lâmina em suas costas. A faca foi removida em cirurgia — não se retira lâmina sem auxílio médico, a pessoa pode sangrar até morrer. Melhor deixá-la comprimindo o ferimento.

O homem sobreviveu e já virou personagem dos causos contados pelos funcionários do HCR em horas de calmaria. Fotos batidas pelos socorristas, mostrando o ferimento cinematográfico, circulam de mão em mão.

Há uma ala específica para presos, no terceiro andar do HCR. Todo dia tem alguém ali, algemado à cama, após algum procedimento. Às vezes, falta lugar, como nesta sexta-feira. Antônio Fernando Lebanov, 65 anos — um dos presos mais antigos do sistema penitenciário gaúcho —, está desde as 14h esperando leito. Consegue às 20h30min. Condenado por homicídio e tentativa de homicídio, ele cumpre pena em Montenegro. Levou um tombo no chão molhado e quebrou uma perna. Geme de dor, recebe tranquilizante, dorme. Os agentes penitenciários aguardam pelo leito de Lebanov em pé. Alguns passantes estranham os homens armados no corredor. Os funcionários do HCR, não.

À meia-noite, chega outro preso, algemado por um PM. Está com o rosto amarrotado, sangrando e cheio de hematomas. O policial revela que o homem de 35 anos, com antecedentes por tráfico, quase foi linchado por uma multidão que o acusa de tentar estuprar duas crianças. Inerte em uma cadeira de rodas, é levado para uma cama e medicado, sempre algemado.


Foto: Guilherme Santos, Agência RBS

Um acidente de moto trouxe um sujeito ruivo e forte, Jáder, à emergência. Ele só lembra de ter bebido bastante. Está com clavícula, um braço e uma perna quebrados, além de suspeita de TCE (Trauma Crânio-Encefálico) — motivos que o farão gritar e gemer da 0h30min às 5h de sábado. O capacete dele jaz no chão ao lado da cama, amassado e embarrado, prova de que a queda não foi pequena.

Quando as enfermeiras fazem um círculo para retirar a roupa dele, Jáder profere palavrões. Uma das funcionárias perde a paciência:

— O senhor bebeu todas, nem se aguenta em pé. Seja homem! Já recebeu analgésico, agora se acalme!

Motoqueiros formam o elenco mais crítico entre os pacientes de trauma. O corpo deles funciona como um para-choque nos acidentes, portanto, estão mais sujeitos a ferimentos graves e amputações cirúrgicas, destaca o cirurgião vascular Márcio Pasa. Um dos chefes do plantão noturno, Pasa gosta de sua atividade, mas reconhece componentes insalubres.

— Como dar a notícia para alguém de que teremos de amputar? Difícil, muito difícil. Por vezes acordo e penso: quem vai morrer hoje? Quem vai perder uma perna? — lamenta.


Foto: Guilherme Santos, Agência RBS



A madrugada é chuvosa e gélida, mas quatro enfermeiros e três médicos suam em bicas. São 3h30min de domingo, 4 de maio. De joelhos sobre a cama, eles se revezam na mais antiga das manobras de ressuscitação, a massagem cardíaca. Comprimem uma mão contra a outra e dão poderosos empurrões no peito da paciente, na média de dois por segundo. Usam o peso do próprio corpo para aumentar a força. Ao fundo, luzes azuladas nos monitores e um gráfico amarelo mostram o ritmo dos batimentos cardíacos da idosa vítima de atropelamento.

O coração dela parou às 3h25min. A linha do monitor aparece reta, regular, nada bate naquele peito. Após os primeiros dois minutos de massagem, o coração volta a bater. O monitor esboça ruídos, bip, bip, enquanto o indicador gráfico exibe altos e baixos.

A alegria dos socorristas é efêmera. A mulher sofre uma segunda parada cardíaca, evidenciada pelo tuímmm contínuo do monitor. Sobe outro enfermeiro na cama, massagem por dois minutos. Cede a vez a um médico, mais dois minutos de batalha. E o coração volta a bater. O problema agora é a arritmia: as batidas superam 200 por minuto, quando o normal seriam 80. Depois vão caindo, caindo... Baixam de 60, 50, 40. Nervosismo geral, rostos crispados, lábios apertados. Pouco se fala, muito se age.

— Não vai dar, aplica adrenalina! — apela o médico mais velho, preceptor de todos aqueles jovens.

A injeção é aplicada em uma veia do braço. Feito uma bomba líquida, o hormônio corre pelas artérias da paciente e desperta o coração de sua letargia. Voltam os batimentos e, com eles, os sorrisos da equipe médica. Por pouco tempo.

Em segundos, a cena desoladora se repete: as batidas diminuem, diminuem, diminuem, até o tuímmm fatídico anunciar mais uma parada. O que está acontecendo?

Dois médicos experientes e um residente fazem uma rápida reunião. Tentam identificar qual a causa das paradas, enquanto os enfermeiros continuam a massagem cardíaca. Será a falha dos rins, comprometendo todo o corpo? Será uma hemorragia no abdômen, que passou despercebida na tomografia? Parece ser tudo isso junto, mas agora é correr contra o relógio. Não há condições para cirurgia, até porque a paciente não respira.Em vídeo, um pouco da rotina no hospital:

Antes da meia-noite, a vítima, Leonize Funari Camejo, 62 anos, estava não apenas alerta, mas conversando. Ela recebeu visita de um dos filhos e se queixou de dor nas costas, talvez sintoma de rins em mau funcionamento.

Leonize fora atropelada à tarde. O acidente foi uma sucessão de fatalidades: a avó levara a neta ao Carrefour situado junto ao viaduto Obirici, na Zona Norte. Após as compras, a idosa pagou e saiu, sem reparar que a neta ainda brincava. Ao atravessar a Avenida Plínio Brasil Milano, Leonize percebeu a falta da criança. Retornou correndo — e foi atingida por uma caminhonete. Sofreu fraturas no púbis, na tíbia e fíbula (ambas na perna esquerda). Ficou com manchas arroxeadas na coxa esquerda, prováveis sintomas de uma hemorragia que levaria às paradas cardíacas e que os exames não detectaram. Leonize ainda se preocupou em pedir a um PM que buscasse a neta, o que foi feito.

Por volta da meia-noite, Leonize para de falar e fica inerte. É colocada num respirador, e os enfermeiros chamam os três filhos dela. Começa a luta para tentar salvar sua vida. Após a primeira parada do coração, são 35 minutos de massagens cardíacas, breves batimentos, novas paradas. A lei manda que a ressuscitação ocorra por no mínimo 20 minutos. Médicos e enfermeiros sempre vão além.

— Uma vez fiquei uma hora massageando, me alternando com colegas — recorda a experiente enfermeira Sandra Regina Suita.

Às 3h58min, o médico chefe da equipe faz sinal de negativo. Todos olham para o chão, semblantes vazios. Chega o momento mais temido pelos profissionais da medicina: avisar os familiares. O médico chefe vai até o filho mais velho de Leonize, que espera no corredor. As palavras são cuidadosas, a frase é curta.

— Olha, sinto muito. Fizemos o possível. Tentamos reanimar tua mãe por 35 minutos, mas ela faleceu. Sinto muito, mesmo.

Trêmulo, o rapaz cobre o rosto com as mãos e cai num choro sentido, que comove a todos no corredor. Desta vez, a morte venceu.



sábado, 17 de maio de 2014

UM HOSPITAL SOB O RISCO FECHAR


ZERO HORA 17 de maio de 2014 | N° 17799

HUMBERTO TREZZI

SAÚDE ATENDIMENTO PRECÁRIO

EM CRISE FINANCEIRA crônica, o Parque Belém, na Capital, demitiu servidores e só mantém 60 dos 199 leitos disponíveis



Uma sucessão de reuniões na Secretaria Municipal de Saúde (SMS) tenta, há dias, evitar um problema para o serviço de saúde de Porto Alegre: o fechamento do Hospital Parque Belém, na Zona Sul.

Envolvido em uma crise financeira crônica, o estabelecimento demitiu mais de 30 funcionários em uma semana e suspendeu atendimento e internações para a maior parte das especialidades.

Estão sem atividade os setores de neurologia e traumatologia, assim como o atendimento de emergência. A pediatria já tinha fechado há mais de uma década. Três setores ainda funcionam: UTI, psiquiatria e dependência química – ali existe o Centro de Dependentes Químicos, que é referência estadual.

Situado no bairro Belém Velho, o hospital tem 199 leitos e, no ano passado, completou 70 anos de existência. Por falta de pagamento, médicos especializados em traumatologia e neurologia rescindiram contrato com o Parque Belém há dois meses. Os pacientes que estavam nas unidades de traumatologia e neurologia foram, então, transferidos para outros hospitais ou para a UTI, nos casos graves.

A unidade de terapia intensiva, que tem 20 leitos, está com apenas três deles ocupados, informa a SMS. Das 199 camas para pacientes existentes no Parque Belém, apenas 60 estão ocupadas, todas por dependentes químicos em tratamento psiquiátrico.

– Alguns médicos não recebiam salário há três meses e deixaram o serviço. Já os funcionários de outras áreas estão com vencimentos em dia, embora falte passagem de ônibus para alguns – revela um técnico de enfermagem do hospital, que prefere não se identificar.

Zero Hora procurou a direção do Parque Belém. A assessoria de imprensa informou que o presidente do hospital, Luiz Augusto Pereira, deve se manifestar na próxima semana, “possivelmente com boas novas”.

SALÁRIOS FINANCIADOS E COZINHA INTERDITADA

Os salários de quem trabalha no hospital estão sendo pagos mediante financiamento de R$ 5 milhões conseguido pela direção da unidade, informa o secretário municipal da Saúde, Carlos Casartelli, que há três anos realiza reuniões com a direção do Parque Belém para tentar contornar a crise.

Casartelli diz que a cozinha da instituição foi interditada há 30 dias pela Vigilância Sanitária Municipal. O hospital permaneceu aberto, sob condição de contratar uma empresa para fornecer alimentação, mas acabou usando um dos andares desocupados para organizar as refeições, o que foi considerado improvisação.

Até por esse motivo, parte da UTI também foi interditada, revela Casartelli. Ainda há falta de gerador, o que compromete a segurança dos pacientes, caso falte luz.

– Propus que sejam abertos 30 leitos de longa permanência e baixa complexidade, para evitar o fechamento – afirma Casartelli.

DOAÇÃO CRUZADA



ZERO HORA 17 de maio de 2014 | N° 17799 ARTIGO


por Adriana Thoma*



A compatibilidade nem sempre é fácil e, para que alguém receba o transplante, outra família, a do doador, sofre pela perda de alguém querido. Alguns órgãos, porém, podem ser doados por pessoas vivas, como é o caso de um rim.

Para quem tem insuficiência renal crônica, a diálise ou transplante não são cura, apenas tratamentos. Porém, a diálise, com o tempo, traz consequências importantes enquanto o transplante é uma alternativa bem mais eficaz.

A maioria de nós nasce com dois rins, que juntos exercem 100% da função renal. A retirada de um deles para doar a um paciente que não tem mais nenhum faz com que essa função caia para 50%.

No entanto, em poucos meses o rim remanescente atinge de 70% a 80% da função, o que já é suficiente para alcançar a faixa de normalidade. Os médicos afirmam que essa cirurgia é muito tranquila para o doador, que poucos dias depois da cirurgia recebe alta definitiva.

Muitos gostariam de ser doadores, mas nem sempre são compatíveis e apenas pessoas da família podem doar. Nos últimos anos, venho pensando em propor aos médicos a criação de uma organização de familiares dispostos a doar de forma “cruzada”. O que isso significa? Se eu não sou compatível com a pessoa da minha família, mas meu rim serve para outro que está na fila, faço a doação e meu familiar pode receber de outro que faça parte desse grupo. Isso não acabará com a fila, mas certamente a diminuirá, sem contar que as chances de o transplante ser bem-sucedido, sendo o órgão de um doador vivo, aumentam muito. Mas para isso serão necessárias autorização judicial e, talvez, alguma lei que assegure o direito de sermos doadores em vida.

Meu sangue é tipo A. E estou disposta a doar a alguém que precise!


PROFESSORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL (UFRGS)


sexta-feira, 16 de maio de 2014

INTERNET DEMAIS PREJUDICA SAÚDE MENTAL DAS CRIANÇAS


Internet demais prejudica saúde mental das crianças, diz estudo. Relatório enviado pela Public Health England ao Parlamento atribui à rede sintomas como solidão, depressão e ansiedade nos jovens

O GLOBO
Atualizado:16/05/14 - 11h24

Crianças aproveitam a internet ultrarrápida na Coreia do Sul Kim Jae-Hwan / Arquivo/AFP


RIO - Relatório da agência de saúde pública britânica enviada ao Parlamento afirma que o excesso de tempo na internet está prejudicando a saúde mental das crianças.

Na avaliação da Public Health England - responsável por estabelecer os parâmetros do venerado sistema público de saúde britânico -, o abuso da rede provoca nas crianças problemas como solidão, depressão, ansiedade, baixa autoestima e agressividade, informou o site do jornal “Telegraph”.


Os efeitos nefastos da conectividade atingem sobretudo os jovens que passam mais de quatro horas por dia na internet. Mas a agência ressaltou que mesmo uma exposição muito baixa à rede pode ser prejudicial.

“As evidências sugerem que há relação entre a dosagem e os efeitos, e cada hora de uso (da internet) aumenta a probabilidade de a criança experimentar problemas socioeconômicos e o risco de baixa autoestima”, disse o relatório.

A Public Health England foi apocalíptica em suas conclusões, atribuindo aos computadores responsabilidade por grande parte dos crescentes problemas de saúde que afetam as crianças no Reino Unido. Segundo o texto enviado ao Parlamento, um décimo da população infantil sofre de algum transtorno de ordem mental e um terço dos adolescentes experimentam tristeza pelo menos uma vez na semana.

A agência chega a afirmar que a internet pode ter destruído todo o avanço conquistado no bem-estar das crianças britânicas nas últimas duas décadas, informou o “Telegraph”.

PORQUE NÃO DESISTIMOS


ZERO HORA 16 de maio de 2014 | N° 17798. ARTIGO

por José J. Camargo*



Aprendi nesses anos, trabalhando no limite da alta complexidade, que esta tarefa nos condenou a uma vida em que a felicidade não tem nada a ver com paz, é apenas um fugaz ponto de equilíbrio no máximo de tensão.

Depois do primeiro caso de transplante de pulmão, que foi um sucesso com repercussão continental, coube-nos o desastre do segundo caso. Era um paciente de apenas 36 anos, que apresentava uma fibrose pulmonar secundária ao uso de drogas injetáveis, e que submetido a um transplante de pulmão teve uma evolução inicial normal mas desenvolveu uma rejeição sem resposta ao tratamento e acabou morrendo depois de 13 dias.

Quando terminamos a necropsia, estava clareando o dia. O exame do fígado e dos rins mostrava que as drogas alteraram também esses órgãos e isso explicava a falta de resposta à medicação, mas o entendimento do caso não diminuía o sentimento de perda.

Com o fracasso pesando uma tonelada, saí da UTI exausto e encontrei na antessala os três pacientes que naquela época compunham a nossa então modesta lista de espera para o transplante. Minha primeira reação foi de surpresa por descobrir que eles acompanhavam o caso, tão de perto e tão unidos, depois a ânsia de descobrir como se comportariam diante daquela tragédia, e cheguei a imaginar o pedido de desligamento do programa recém iniciado. E os três, chorando abraçados, suplicaram: “Dr. seja forte, pense em nós, e não desista, pelo amor de Deus!”.

Porque não desistimos, ultrapassamos os 460 transplantes, e cumprimos hoje 25 anos da história que se iniciou naquela inesquecível madrugada de 16 de maio de 1989.

Daquele episódio, dois sentimentos dominantes: a descoberta definitiva de que todos os grandes passos da nossa trajetória são inevitáveis exercícios de solidão e que, depois daquele salto rumo ao desconhecido, a nossa vida nunca mais seria a mesma e a história cobraria o preço da mudança.

O trabalho nesta área de alta complexidade só pode ser exitoso com o concurso de muitas cabeças determinadas e solidárias, e com elas compartilhamos trabalho, alegrias e perdas. Passado esse tempo, seguimos ainda atormentados com a sensação de que poderíamos ter feito mais e melhor, mas reconfortados com a certeza de nunca desistiremos de tentar!

*DIRETOR DO CENTRO DE TRANSPLANTES DA SANTA CASA DE PORTO ALEGRE

sábado, 10 de maio de 2014

LEITE DERRAMADO

ZH 10 de maio de 2014




EDITORIAL

A indústria gaúcha do leite ficou num brete depois da prisão de empresários que vinham aceitando e comercializando produto contaminado por bicabornato, água oxigenada e soda. E o Rio Grande do Sul tem todos os motivos para, como diz o ditado popular, chorar o leite derramado, uma vez que o novo escândalo gera prejuízos irreparáveis para toda a produção. Cabe, porém, distinguir aqueles que trabalham honestamente dos fraudadores. E a população só terá certeza disso se houver uma ampla e transparente exposição dos processos de controle que as empresas sérias utilizam.

Entre os tantos aspectos preocupantes da fraude envolvendo um alimento de primeira necessidade, chama a atenção o fato de a adulteração persistir um ano depois da indignação provocada pela denúncia de adição de água e ureia com formol por parte de transportadores no noroeste do Estado. A particularidade de as fraudes terem deixado de ocorrer agora apenas no âmbito de intermediários, estendendo-se também à indústria, mostra que, nesse tipo de caso, não bastam o clamor popular e a reafirmação de punições rígidas para impor mais seriedade. Há necessidade de ações mais firmes, de forma permanente.

No mais recente caso, resultante da quinta etapa de investigações do Ministério Público Estadual, um dos envolvidos foi condenado em 2006 pelo mesmo tipo de prática e, posteriormente, absolvido em primeira instância. Trata-se, portanto, de profissionais especializados em aumentar os ganhos fazendo o produto render mais em volume, mediante a adição de água. Ou, então, de mascarar a perda de teor nutricional com o uso de ureia e formol. Ou, como se viu agora, até mesmo de recorrer a produtos com potencial para provocar danos à saúde, como soda cáustica, bicarbonato de sódio e água oxigenada, com o objetivo de permitir o aproveitamento de leite azedo sem maiores riscos de levantar suspeitas entre as vítimas.

O consumidor não pode continuar submetido a artimanhas perversas que demonstram o absoluto descaso com a qualidade até mesmo em relação a um alimento essencial, principalmente para crianças e adolescentes. O fato se torna ainda mais grave porque leite é um item que, da produção à indústria, passa por vários intermediários, dificultando a fiscalização direta. Esse, portanto, é o momento de os que atuam com seriedade na cadeia do leite avançarem na adoção de mecanismos que impliquem maior transparência. Ainda assim, só não haverá razão para temores se o setor público demonstrar que está permanentemente vigilante e disposto a punir quem insiste em enganar a população.

quinta-feira, 8 de maio de 2014

BOLSA REMÉDIO?


ZERO HORA 08 de maio de 2014

MARCELO S. PORTUGAL
Economista e professor titular da UFRGS



A reportagem sobre o desperdício do dinheiro público na compra de remédios publicada na ZH de 5 de maio é revoltante. Descobrimos que, entre 2005 e 2013, cerca de R$ 13,2 milhões do dinheiro público foram destruídos pelo governo do Estado. Há duas coisas a fazer: punir os responsáveis por esse desperdício; procurar novos mecanismos para eliminar esse desperdício.

É função do Estado prover bens públicos para os cidadãos, principalmente aqueles associados a educação e saúde. No caso específico, parece claro que é importante que o Estado continue a prover remédios para aqueles cidadãos de baixa renda que não conseguem comprá-los com recursos próprios. A questão é como fazer isso de forma eficiente, isto é, ao menor custo financeiro possível. A forma atual, na qual o Estado compra os remédios e os distribui para os cidadãos necessitados, não parece ser a mais eficiente.

Esse caso me faz lembrar o programa Fome Zero. No início do governo Lula, o principal programa do governo era o Fome Zero, que pretendia prover comida, na forma de três refeições ao dia, para os mais pobres. Felizmente, esse programa foi abandonado e substituído pelo programa Bolsa Família. Ao invés de o Estado comprar arroz e feijão e depois distribuir cestas básicas, o governo optou por, simplesmente, dar o dinheiro à população carente e deixar que ela mesma faça as compras.

Esse é um exemplo importante de como o Estado provê um bem público aos cidadãos sem precisar se envolver diretamente no processo de produção, compra e distribuição dos bens. O cidadão que recebe o Bolsa Família gasta o dinheiro da forma mais eficiente, buscando produtos de boa qualidade ao menor preço. Cada real poupado em um quilo de arroz é um real a mais a ser gasto na compra de outros bens.

Por que não fazer o mesmo no caso dos remédios? Já há o cadastro dos cidadãos carentes. Basta agora dar o dinheiro diretamente a eles na forma de uma espécie de bolsa remédio. Assim, elimina-se a ineficiência na gestão e reduz-se a burocracia necessária no processo de licitação, estocagem e distribuição dos remédios.

segunda-feira, 5 de maio de 2014

MÁ GESTÃO DEIXA VENCER TONELADAS DE MEDICAMENTOS

ZERO HORA 05/05/2014

Saúde pública estadual. Má gestão resulta em toneladas de medicamentos com data de validade vencida. Cerca de 60 toneladas de remédios pelo governo do Estado para atender a população desde 2005 não têm condições próprias para consumo

por Cleidi Pereira



TCE aponta deficiência na gestão do almoxarifado central, um labirinto de 2,2 mil metros quadrados
Foto: Diego Vara / Agencia RBS


Todos os meses, caixas de papelão recheadas com medicamentos vencidos formam uma pequena muralha no almoxarifado central da Secretaria Estadual da Saúde (SES), em Porto Alegre.

Colírios, sedativos, insulinas, cremes ginecológicos, suplementos alimentares, antivirais do tipo Tamiflu e até remédios para tratamento de câncer eram alguns dos itens que, no início de abril, estavam nas pilhas identificadas com placas de “prazo expirado” e “quarentena”, ou seja, prestes a vencer.

Entre 2005 e 2013, quase 60 mil quilos de remédios perderam a validade nos estoques do Estado. Comprados para atender a população carente, acabaram em aterros da Região Metropolitana.

Apenas o volume descartado nos últimos três anos significou prejuízo, em valores corrigidos, de R$ 13,2 milhões, conforme dados obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação, junto à SES e ao Tribunal de Contas do Estado (TCE). O montante, que corresponde a 6% do total gasto pelo Estado na aquisição direta de medicamentos no ano passado, seria suficiente para comprar 88 ambulâncias.

Relatórios de auditorias do TCE, analisando os exercícios de 2010 e 2011, apontaram deficiências na gestão dos medicamentos como causa do desperdício. “Essa falta de controle tem início nas requisições de compra, envolvendo o gerenciamento de previsões, passando pela falta de acompanhamento e análise do estoque existente, até a inércia quanto à adoção de medidas que viessem a resguardar o dinheiro público, quer por meio da devolução, troca ou repasse, fazendo com que a despesa alcance seu objetivo, qual seja, o fornecimento de medicamentos, salvando vidas”, diz um trecho do relatório.

Auditores querem achar responsáveis

Os auditores sugeriram que fosse instaurada uma Tomada de Contas Especial, na tentativa de apurar o montante desperdiçado e apontar os responsáveis. Mas a medida depende do andamento de inspeção extraordinária na SES, já que os processos tramitam em conjunto.

– É difícil considerar que não haveria descarte nenhum. A questão é a quantidade descartada. Com certeza, como o relatório apurou, poderia haver melhoria. Uma quebra sempre vai existir, mas o ideal seria perto de zero – avalia o supervisor de Auditoria e Instrução de Contas Estaduais do TCE, Clayton Paim Moreira.

No almoxarifado, os remédios adquiridos pelo Estado ou repassados pelo Ministério da Saúde são divididos por setores e armazenados em gigantescas prateleiras. Por poucos metros, as pilhas não encostam no telhado metálico, que em dias quentes torna mais difícil a jornada dos 57 trabalhadores do local.

Sobra de um lado, mas falta do outro

A aposentada Virgínia Pereira de Campos, 53 anos, carrega na bolsa receitas datadas de outubro de 2013 e janeiro de 2014. Nos últimos meses, ela exercitou a paciência – uma virtude adquirida diante das limitações impostas pelo diabetes – ao peregrinar por postos de saúde em busca de dois medicamentos, a sinvastatina e a insulina regular.

Apesar da dificuldade de locomoção, Virgínia, que reside na zona sul da Capital, já esteve em três unidades de saúde desde o início do ano para obter a sinvastatina. Todas as vezes, a resposta dos atendentes era a de que o produto estava em falta.

No caso da insulina regular, no decorrer de um ano, a aposentada conta ter sido informada na unidade que frequenta, a Moradas da Hípica, de que a medicação deveria ser retirada em outro posto. Na tentativa de buscar o remédio em outro local, era mandada de volta para a unidade do seu bairro.

– Não posso ficar caminhando. Se caminho um pouco, logo estou morrendo de dor nos pés – diz.

Secretaria reconhece escassez de produto

Quando ZH conversou com a aposentada, em meados de abril, ela havia decidido que iria comprar a sinvastatina, após três meses de espera pela medicação. Virgínia resolveu insistir pela última vez, atendendo a um pedido da reportagem, que a acompanhou até a Unidade Básica de Saúde Moradas da Hípica. Passados alguns minutos, ela deixou o posto com caixas de medicamentos em mãos.

– Até a insulina regular me deram – ressaltou, acreditando que a presença da reportagem tenha contribuído para o atendimento da demanda.

De acordo com a Secretaria Municipal da Saúde, houve interrupção no fornecimento da sinvastatina, entre fevereiro e abril, por conta de um contratempo ocorrido no laboratório que repassa o produto. Quanto à insulina regular, a pasta nega que tenha havido problema no repasse do medicamento.

Jogo de empurra nas explicações

A desorganização nos estoques de medicamentos no Rio Grande do Sul se reproduz nas explicações do poder público para o desperdício de produtos.

A Secretaria Estadual da Saúde (SES) responsabiliza o Ministério da Saúde por boa parte da perda de remédios, e o ministério devolve a culpa para a pasta estadual, em um jogo de empurra.

A secretaria afirma que o governo federal envia mercadoria com prazo de validade curto ou em quantidade superior ao necessário para o Rio Grande do Sul. O repasse de excedente seria uma medida estratégica, para atender a programas como DST/Aids e Saúde da Mulher.

Procurado pela reportagem, o Ministério da Saúde afirma que manda aos Estados o montante solicitado pelas secretarias e que a remessa é acrescida de um volume extra – também definido pelas próprias pastas estaduais – destinado à formação de um estoque preventivo.

“Cabe destacar que compete às secretarias de Saúde a organização dos estoques, manutenção de condições adequadas de armazenamento e critérios corretos de descarte dos produtos. Todos os medicamentos enviados pelo ministério respeitam os critérios de validade e de qualidade dos produtos”, diz o Ministério da Saúde, em nota enviada a ZH.

Relação entre governo e judiciário tem falhas

O descompasso no setor público igualmente aparece na relação do governo estadual com o Judiciário. Segundo a diretora da Assistência Farmacêutica do Estado, Simone Pacheco do Amaral, o descarte de produtos também ocorre porque itens obtidos pelos cidadãos por via judicial não são retirados.

Ela explica que a Justiça obriga o Estado a comprar as medicações, mas, ao mesmo tempo, determina o bloqueio e repasse de parte do valor ao beneficiado para garantir o início imediato do tratamento. Como a secretaria não é avisada, adquire o fármaco e acaba ficando com excedente em estoque. Como são medicações específicas, o Estado tem dificuldades de fazer o remanejo.

Após os apontamentos do TCE, foi implantado inventário eletrônico mensal e criado um grupo para monitorar os prazos de validade e realizar o remanejo de estoques entre cidades. A secretaria também passou a não aceitar o recebimento de lotes de medicamentos com mais de 20% do prazo de validade transcorrido.

Os resultados dessas ações demoram para aparecer. Em 2013, o volume de produtos vencidos cresceu 64,3% em relação a 2012. Simone ressalta que o almoxarifado central recebeu R$ 608 milhões em medicações no ano passado, contra um total R$ 439 milhões em 2012.

Ela também explica que houve incremento de 16% na demanda judicial em 2013 – chegando a 60,7 mil usuários com tratamentos pagos pelo Estado após uma decisão da Justiça – e que 22% do valor em medicamentos vencidos no ano passado são referentes ao oseltamivir (tamiflu).

– O descarte sempre vai acontecer. O que se tem de fazer é estimular o uso racional. É uma questão de bom senso – diz Simone.

Sobre as condições precárias do almoxarifado – apontadas pelo TCE –, a SES informa que foram efetuadas melhorias na estrutura e que um projeto de climatização está em andamento.


AS EXPLICAÇÕES DA SECRETARIA

- Medicamentos são enviados pelo Ministério da Saúde com “prazo de validade curto”, o que aumenta “significativamente” o percentual de perda. Também são repassados itens em excesso, por uma questão estratégica, para atender programas como DST/Aids.

- Há necessidade de adquirir medicamentos para enfrentar possíveis epidemias, como o caso do H1N1.

- Usuários obtêm acesso ao tratamento por via judicial, mas acabam não retirando parte dos remédios porque a Justiça também determina o repasse direto de recursos aos beneficiados para a compra dos produtos.

- Havia déficit de farmacêuticos no almoxarifado central. Os profissionais passaram de três para 10 nos últimos quatro anos.

- A SES reconhece que havia “gestão deficitária” do almoxarifado central, que estava sob responsabilidade da Fundação Estadual de Produção e Pesquisa em Saúde (Fepps) até o ano passado. Agora, o setor está sob controle da pasta.


domingo, 4 de maio de 2014

DOS BRASILEIROS QUE SE AUTOMEDICAM, 32% ELEVAM DOSE DE REMÉDIO


FOLHA.COM, 04/05/2014


CLÁUDIA COLLUCI
DE SÃO PAULO0




Quase um terço (32%) dos brasileiros que se automedicam costuma aumentar a dose do remédio por conta própria, sem orientação do médico ou do farmacêutico.

É o que revela pesquisa inédita do ICTQ (instituto de pós-graduação para farmacêuticos) feita em 12 capitais do país. Foram ouvidas 1.480 pessoas com 16 anos ou mais que consomem remédios.

O estudo, que será divulgado amanhã, aponta que a automedicação é praticada por 76,4% dos brasileiros. Salvador (96,2%), Recife (96%) e Manaus (92%) lideram o ranking. Na cidade de São Paulo, a taxa é de 83%.

"Todo mundo sabe que o brasileiro consome muito remédio indicado pela família, amigos e vizinhos, mas foi um choque saber dessa quantidade de pessoas que aumenta a dose por conta própria para potencializar o efeito", diz Marcus Vinícius Andrade, diretor de pesquisa do ICTQ.

Para Pedro Menegasso, presidente do CRF (Conselho Regional de Farmácia) de São Paulo, as pessoas não fazem ideia do risco que correm ao se automedicar ou duplicar a dose de um remédio.

"É extremamente perigoso, por exemplo, a mãe dar para criança dois comprimidos de 750 mg de paracetamol no mesmo dia. Ou as pessoas usarem muitas gotas de descongestionante nasal."

O aumento na quantidade de medicamentos além da dose recomendada pode trazer vários problemas, como alergias, hemorragias e graves lesões no estômago e no fígado, alerta Paulo Olzon, professor da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).

Antiinflamatórios usados sem critério, por exemplo, podem causar contração dos vasos, retenção de sódio e água (elevando pressão arterial) e sobrecarga no coração.

Olzon conta que só na última semana diagnosticou dois pacientes de classe média com sintomas de intoxicação medicamentosa por uso indevido de corticoide.

"Um senhor tomava um remédio receitado pelo pai de santo, era cortisona. Estava todo inchado. Outra mulher comprava um remédio pela internet, também corticoide, que causou supressão total da hipófise e da tireoide", diz.

Os medicamentos são os principais agentes causadores de intoxicação no país, à frente até de agrotóxicos. Respondem por quase 30% dos registros, segundo o Sistema Nacional de Informações Toxico-Farmacológicas.

Em 2011 (últimos dados disponíveis), foram 29.179 notificações, com 44 mortes. As crianças menores de cinco anos representam cerca de 35% dos casos de intoxicação.

"A mãe dá 30 gotinhas para para tirar a febre, depois dá mais 30 e a criança acaba no pronto-socorro", afirma Dirceu Raposo de Mello, professor de farmácia da Universidade Anhembi Morumbi.

Ex-presidente da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), Mello está coordenando um trabalho acadêmico sobre o tema e diz que é grande o vácuo de dados sobre as intoxicações.

Nos EUA, analgésicos lideram a lista de drogas que mais intoxicam crianças, segundo estudo no "Journal of Pediatrics". Foram 453 mil crianças intoxicadas entre 2001 e 2008, com 66 mortes.

Para Dirceu Raposo, além de um sistema de controle falho, há uma grande falta de educação do brasileiro para o uso racional de remédios.

CONSCIENTIZAÇÃO

Na pesquisa, 61,4% dos que se automedicam dizem estar conscientes dos riscos, mas afirmam que isso não é o bastante para detê-los. Amanhã (5), Dia Nacional pelo Uso Racional de Medicamentos, o conselho paulista de farmácia fará uma ação no Masp, na av. Paulista, para conscientizar as pessoas.

"O problema maior é cultural. O medicamento é banalizado, ninguém fala o quanto ele pode ser perigoso", diz Menegasso. Além das intoxicações, o mal uso de remédios pode mascarar sintomas e agravar doenças, diz.

A pesquisa também aponta que o controle imposto pela Anvisa sobre determinados medicamentos já começa a surtir efeito. Apenas 8,2% das pessoas entrevistadas declararam consumir medicamentos tarja preta ou tarja vermelha (aqueles com retenção de receita). Em 2012, eram 20%.

UM HOSPITAL PÚBLICO QUE PARECE PRIVADO


 REVISTA ÉPOCA 29/04/2014 09h17
Em Salvador, um hospital público que parece privado. O Hospital do Subúrbio mostra que o governo não precisa gastar mais para oferecer um atendimento de qualidade à população

JOSÉ FUCS, DE SALVADOR


EM RECUPERAÇÃO
O motorista Aderson Barreto Brito e sua mãe, Ademaura, num quarto da enfermaria do Hospital do Subúrbio. Ele sofreu uma cirurgia delicada na perna esquerda (Foto: Márcio Lima/ÉPOCA)


Hospital do Subúrbio, em Periperi, bairro pobre e violento da periferia de Salvador, é a maior prova de que é possível melhorar a saúde pública no país sem ter de gastar uma fortuna. Primeira parceria público-privada (PPP) do Brasil no setor de saúde, o Hospital do Subúrbio alia o melhor de dois mundos: é um hospital público, com atendimento gratuito, com a qualidade de um bom hospital particular. Construído pelo governo baiano, o Hospital do Subúrbio é administrado, operado e equipado pela iniciativa privada desde sua inauguração, em setembro de 2010. O melhor: seu custo é, segundo a Secretaria de Saúde da Bahia, cerca de 10% mais inferior ao de hospitais similares geridos diretamente pelo governo do Estado. “Administrar um hospital – pessoal, insumos, equipamentos – é algo complexo, que exige uma agilidade que o Estado não tem”, diz Jorge Oliveira, presidente da Prodal Saúde, empresa que ganhou a concessão do Hospital do Subúrbio por dez anos, num leilão realizado na BM&F Bovespa em março de 2010.

O pioneirismo da PPP do Hospital do Subúrbio coube, ironicamente, a um governo ligado ao PT – partido que, em campanhas eleitorais, opõe-se a privatizações de forma veemente. Mesmo correndo o risco de ser criticado por correligionários, o governador Jaques Wagnerdeixou de lado a ideologia e adotou uma atitude pragmática. Com o limite de recursos próprios, uniu-se à iniciativa privada. Ao final, não apenas reforçou a rede pública de hospitais de urgência e emergência em Salvador – que não crescia havia 20 anos –, como economizou o dinheiro que teria de usar para equipar o hospital. Esse investimento, R$ 30 milhões até agora e uma estimativa de outros R$ 30 milhões até o final do contrato, em 2020, foi todo feito pela concessionária. O Estado, responsável pela construção do prédio, gastou mais R$ 50 milhões na obra.


“Fizemos uma opção heterodoxa pela combinação de várias alternativas de gestão, sem preconceito de nenhuma natureza”, afirma Jorge Solla, ex-secretário de Saúde da Bahia e ex-secretário de Atenção à Saúde do Ministério da Saúde no primeiro mandato de Lula. Petista histórico, Solla coordenou o projeto de concessão do Hospital do Subúrbio ao setor privado e deixou o cargo no fim de janeiro, para concorrer a uma vaga na Câmara dos Deputados. “Quem está na gestão tem de fazer o diagnóstico dos problemas e encontrar a melhor ferramenta para dar conta deles. Não basta dizer que não pode.”

Houve oposição feroz à iniciativa por parte de médicos do setor público e servidores da área de saúde. Ainda hoje, o projeto é alvo de críticas, especialmente no aspecto ideológico. “Essa PPP é uma enganação”, diz Inalba Fontenelle, presidente do sindicato dos trabalhadores em saúde da Bahia. “É uma forma de privatizar o setor de saúde, dentro do modelo de Estado mínimo que se criou no país nos anos 1990.”

Apesar da gritaria, o Hospital do Subúrbio é um sucesso. Tornou-se, em pouco tempo, uma referência no Brasil e no exterior. Em meados de 2012, foi eleito como uma das 100 iniciativas mais inovadoras do mundo pela KPMG, uma das principais empresas internacionais de consultoria e auditoria. Em abril de 2013, o hospital recebeu o prêmio Parcerias Emergentes, do IFC, o braço financeiro do Banco Mundial, e do Infrastructure Journal como um dos dez melhores projetos de PPP da América Latina e do Caribe. Antes, já recebera um prêmio semelhante da revista World Finance, sediada em Londres. “O Hospital do Subúrbio é um exemplo do que conseguimos fazer quando trabalhamos com o Estado e, ao mesmo tempo, trazemos a experiência do setor privado para oferecer serviços de qualidade aos mais necessitados”, afirmou Jim Yong Kim, presidente do Banco Mundial, em visita ao hospital há um ano. Mais importante, o hospital conquistou a satisfação quase unânime dos usuários, de acordo com uma pesquisa realizada há pouco tempo com pacientes, familiares e visitantes.

“O hospital é nota mil”, disse a ÉPOCA o motorista particular Aderson Barreto Brito, de 24 anos. Ele estava internado num quarto da enfermaria, com mais dois pacientes, em janeiro. Passara por uma delicada cirurgia, para fazer um enxerto na perna esquerda, com tecido tirado da coxa. O objetivo era reparar um “desluvamento” – lesão causada pela separação da pele e do tecido subcutâneo – sofrido num acidente como passageiro de um mototáxi. “Ele está sendo bem cuidado. Sempre dão atenção a ele”, afirmou sua mãe, Ademaura Barreto Brito, de 42 anos. Ela nasceu na Bahia, mas radicou-se em São Paulo e foi ver de perto como estava o filho e acompanhar sua recuperação.

Com 313 leitos, 60 na UTI e 253 na enfermaria, além de mais 60 para internação em domicílio, o Hospital do Subúrbio não tem pacientes deitados em macas ou colchonetes espalhados pelos corredores, como é costumeiro em hospitais públicos. Os quartos da enfermaria costumam receber no máximo três pacientes. Em geral, os resultados dos exames costumam sair no mesmo dia da solicitação. Os equipamentos de diagnóstico por imagem, como ultrassonografia e tomografia, são de última geração. As imagens são armazenadas na rede do hospital e podem ser acessadas a qualquer momento na UTI, no centro cirúrgico ou na enfermaria. Como a manutenção tem de ser feita pela concessionária, fica mais fácil chamar a assistência técnica para consertar as máquinas, porque não é preciso fazer licitação. Isso também facilita a compra de insumos básicos, como soro fisiológico, seringas e algodão. Eles podem ser comprados a qualquer momento. “O setor público compra equipamentos de boa qualidade”, diz Lícia Cavalcanti, diretora-geral do hospital, com larga experiência no setor público de saúde. “Mas, para fazer a manutenção, é muito burocrático.”

No Hospital do Subúrbio, os médicos e funcionários administrativos são contratados pela concessionária, não pelo Estado. Não têm estabilidade, como nos hospitais públicos. Podem ser substituí­dos a qualquer hora, se não tiverem bom desempenho. Quando médicos ou funcionários saem de licença-maternidade, o hospital pode contratar servidores temporários para substituí-los, em vez de ficar com o quadro reduzido. Segundo Lícia, o paciente é atendido pelo mesmo médico da internação até a alta, exceto nos casos de emergência, atendidos pelos médicos de plantão. O acompanhamento e o tratamento pós-ope­ratório costumam ser feitos pelo mesmo médico que fez a cirurgia. Isso facilita o acesso dos pacientes aos médicos e a avaliação dos profissionais, além de contribuir para reduzir o tempo de permanência do paciente no hospital, um dos principais problemas dos hospitais públicos. “Um hospital de urgência e emergência precisa ter rotatividade, para liberar leitos para quem está saindo da emergência”, afirma Lícia. “Não é um lugar para morar. É para ter uma passagem rápida.”

OS NÚMEROS DO SUCESSO

Os principais números do Hospital do Subúrbio


R$ 151,5 milhões é quanto o governo da Bahia paga por ano para terceirizar a gestão e a operação do hospital

46% foi quanto aumentou o pagamento anual feito pelo Estado à concessionária desde 2010

R$ 50 milhões foi quanto o governo baiano investiu na construção do prédio

R$ 30 milhões foi quanto a concessionária investiu no aparelhamento do hospital e na adequação das instalações em quatro anos

10% é quanto o custo do Hospital do Subúrbio é inferior ao dos hospitais administrados diretamente pelo Estado

20% é quanto as transferências do SUS cobrem do custo do Hospital do Subúrbio

400 é o número de pacientes que o hospital chega a receber por dia

313 é o total de leitos do hospital

0,4% é a taxa de mortalidade do hospital no período pós-operatório, abaixo da máxima de 2%, exigida no contrato


Desde o início da concessão, o valor do contrato sofreu quatro revisões. Passou de R$ 103,5 milhões para R$ 151,5 millhões por ano – um salto de 46%. Além de cobrir a alta dos custos, segundo Solla, o ex-secretário de Saúde, isso se deve à ampliação do número de leitos, internações e procedimentos em relação ao previsto no contrato original. Ele diz que, ainda assim, o custo por paciente do Hospital do Subúrbio continua competitivo em relação a hospitais similares administrados diretamente pelo Estado, porque o aumento de custos atinge toda a rede hospitalar. “A inflação no setor de saúde é maior que a média”, afirma.

De acordo com Solla, as metas quantitativas e qualitativas, das quais depende o pagamento mensal da concessionária, foram superadas com folga até agora. A infecção hospitalar ficou em 6,5 casos por 1.000 atendimentos, no último trimestre de 2013, bem abaixo do máximo de 20 por 1.000 previstos no contrato. O índice de rotatividade do hospital deveria ser de, no mínimo, 4,9. Está em 23,6. “Claro que temos falhas, mas procuramos identificá-las e modificá-las”, diz Lícia.

O Hospital do Subúrbio tornou-se vítima de seu próprio sucesso. A qualidade do atendimento e das instalações atraiu uma demanda maior do que se previa. O espaço interno teve de passar por adaptações. Algumas áreas reservadas a ventilação e iluminação no projeto original tiveram de ser reformadas para permitir o aumento no número de leitos. Até o refeitório teve de ser ampliado, para o hospital poder contratar mais funcionários. Embora voltado ao atendimento de urgência, ele chega a receber 400 pacientes por dia, a maioria com problemas corriqueiros. Para não abrir mão de suas conquistas, o hospital adotou uma escala de classificação de risco, que prioriza os casos mais graves. Ainda opera num nível 30% acima de sua capacidade. A sala de medicação, desenhada para receber seis pacientes, foi improvisada para acomodar mais três.

No momento, o governo inicia a construção de uma unidade pré-hospitalar ao lado, para atender os casos mais simples. Sua gestão também deverá ficar a cargo da Prodal, empresa que gerencia e opera o hospital. Isso ainda está em negociação e depende da definição de novas metas e do valor adicional pago à concessionária. Com o término da obra, previsto para o início de 2015, espe­ra-se que o movimento no Hospital do Subúrbio diminua bem. “No Brasil, as emergências hospitalares ainda recebem uma demanda grande de pacientes que deveriam ser absorvidos pelo posto de saúde”, diz Solla. “A população procura um hospital de emergência para coisas básicas, e isso toma tempo e espaço.”

Apesar dos contratempos, o governo baiano prepara novas PPPs para a saúde. Uma delas é para construir e equipar o segundo bloco do Instituto Couto Maia, em Salvador, voltado para doenças infecciosas. Ao contrário da PPP do Hospital do Subúrbio, no Couto Maia a equipe de profissionais será formada por servidores do Estado. Outro projeto prevê a construção de uma central de laudos para diagnósticos por imagem, para modernizar o serviço nos hospitais ligados ao governo estadual. A concessionária será responsável por integrar em rede 12 hospitais, de Salvador e do interior, e pelo investimento em equipamentos. Depois, a ideia é interligar os demais hospitais do Estado ao sistema e permitir que exames e laudos possam ser acessados em qualquer hospital do Estado. Com criatividade e ousadia – e sem preconceito ideológico –, é possível desenvolver projetos inovadores e alcançar resultados estimulantes até numa área carente de investimentos no Brasil, como a saúde pública.

sexta-feira, 2 de maio de 2014

PROPAGANDA ENGANOSA NA SAÚDE



OPINIÃO ZH - 02 de maio de 20140


Saúde não
é mesmo
prioridade
para a gestão
federal


CLAUDIO BALDUÍNO FRANZEN
Representante do Rio Grande do Sul no Conselho Federal de Medicina




Os números estão no orçamento do Ministério da Saúde, que não esconde sua política de sucateamento da rede pública brasileira. Nesta lógica perversa, pela qual se procurou transformar o médico que atua no SUS em bode expiatório da crise da assistência, fica clara a preferência por projetos que primam pela mídia, mas estão longe de melhorar a vida da população.

Todos conhecem a realidade dos hospitais públicos sucateados. Apesar de milionárias campanhas publicitárias, com a presença de atores famosos, verifica-se que a precariedade na saúde persiste. A última pérola reluz bem perto: atingiu o bolso dos hospitais federais, reconhecidamente sempre no vermelho.
Em 2014, até o momento, o somatório dos gastos do Ministério da Saúde com todas as redes de hospitais federais do país chega a R$ 300 milhões. Enquanto isso, R$ 560 milhões foram repassados para a Opas pagar a vinda de intercambistas dentro do programa Mais Médicos.

Só que a tão celebrada vinda de intercambistas cubanos não mudou em nada o quadro atual da assistência à população, com a superlotação das urgências e emergências, a falta de leitos para internação e a fila de espera por cirurgias, além de outras mazelas. Por outro lado, a tabela de honorários do SUS, que remunera atos médicos e despesas hospitalares, se encontra congelada desde 1995, tornando inviável o atendimento à população.

Trata-se de um quadro que penaliza o paciente brasileiro e só traz vantagens para Cuba, que leva o dinheiro do contribuinte para sanear suas contas. Como se observa, a saúde não é mesmo prioridade para a gestão federal, em que pese sua propaganda enganosa.