domingo, 18 de maio de 2014

A ROTINA DE LUTA CONTRA A MORTE NA EMERGÊNCIA DE HOSPITAL

ZERO HORA 17/05/2014 | 17h01

por Humberto Trezzi

A rotina de luta contra a morte na emergência do Hospital Cristo Redentor. ZH acompanhou dois plantões em uma das principais instituições da rede hospitalar de Porto Alegre




Foto: Bruno Alencastro / Agencia RBS


Existem locais em que só se entra por necessidade — onde furar, cortar e outros verbos aparentemente nocivos significam salvar. É o caso do Hospital Cristo Redentor, especializado em pronto-socorro. ZH testemunhou dois plantões de 12 horas para revelar a rotina do HCR, um dos hospitais públicos mais sobrecarregados de Porto Alegre — acolhe a Zona Norte, a mais populosa, e vem recebendo feridos do Centro e da Zona Sul, pois a outra instituição da Capital voltada para casos urgentes, o HPS, está em reformas. Com 547 atendimentos e 17 cirurgias por dia, o Cristo Redentor é o endereço da emergência — a recomendação é de que não seja procurado para situações menos graves, como dedos quebrados e tornozelos torcidos. Ali, a principal missão é resgatar vidas em risco.

ZH visitou o HCR à noite, quando o movimento fica mais intenso: as pessoas correm, as ambulâncias uivam, geme-se em alto volume e reza-se em voz baixa. Trabalhar lá não é para qualquer um. Além da destreza para costurar músculos com nylon, massagear corações e soprar para devolver a vida, o profissional da área precisa desenvolver uma espécie de carapaça emocional. O tempo é curto para que cirurgião, médico intensivista e enfermeiros se envolvam com os pacientes, até porque, não raro, o ferido está desacordado ou no limiar da morte. A prioridade é salvar; depois se pergunta o quem, o quando, o onde — embora muitos médicos já saibam de antemão: quase todos os que chegam ao HCR são vítimas da guerra urbana, não apenas aquela que opõe criminosos, policiais e cidadãos comuns, mas também uma outra que é igualmente violenta, aquela que tem o trânsito como cenário.

Nas próximas páginas, você conhecerá o cotidiano de um lugar onde os casos são tão críticos que o ritmo de médicos e enfermeiros precisa ser incessante — a ponto de surpreender quem está habituado a hospitais: quase não há filas. Não há tempo a esperar.

O começo do longo plantão

São 19h30min de sexta-feira, dia 2 de maio. Um grupo de enfermeiros se reúne em torno de uma cama na Ala Vermelha do Hospital Cristo Redentor (HCR). Eles lutam contra o tempo. Tentam evitar que terminem ali, na frente deles, os 14 anos de existência do menino que acaba de chegar, esvaindo-se em sangue.

O garoto levou uma facada no coração — durante uma banal discussão em partida de futebol na Vila Safira. Ninguém pergunta detalhes, isso é tarefa de assistente social. Os enfermeiros são supervisionados por Márcio Pasa, cirurgião vascular que chefia o plantão nessa noite que recém começa. Será uma das 17 cirurgias realizadas a cada 24 horas nesse hospital de pronto-socorro.

Foto: Guilherme Santos, Agência RBS

Enquanto aguardam a chegada de um cirurgião torácico, chamado às pressas, os enfermeiros lidam com o tamponamento, uma das piores emergências médicas: o sangue derramado se acumula no saco que protege o coração, o pericárdio, aumentando a pressão sobre o músculo cardíaco, que começa a bater de forma irregular, até parar. Longe do hospital, pode-se dizer que seria morte certa. No Cristo Redentor, o procedimento é rotina: os enfermeiros enfiam uma agulha de ponta rombuda no peito do guri e, com esse furo, fazem com que o sangue saia do pericárdio, permitindo que a pulsação volte ao normal.

Vencida a primeira batalha, no salão do andar térreo, em uma cama dura e sem enfeites (que mais parece uma maca), é preciso fechar o ferimento no coração, para estancar a hemorragia, que pode ser fatal. O paciente é levado na cama de rodinhas ao terceiro andar, onde Pasa, o cirurgião vascular, entrega o caso para o colega Vitor Cachoeira, especializado em tórax. Cachoeira opera há 32 anos no Cristo Redentor, em uma sala esterilizada e dotada de aparelhos de reanimação. A situação é gravíssima. O coração do menino ameaça parar duas vezes, os enfermeiros massageiam o peito para evitar. Tudo isso no corredor do prédio, com a cama deslizando sobre as rodinhas.

Já na sala cirúrgica, Cachoeira abre o peito do rapaz com um bisturi, afasta as costelas com um fórceps e vê o alvo: um corte de dois centímetros no músculo cardíaco, provocado pelo pontaço da faca. Tem de operar com o coração batendo, algo incrível para um leigo, mas habitual para esse médico. Em minutos, passa um fio de nylon no músculo cortado. Os pontos foram inventados por ele e têm até seu nome nos livros de medicina — o nó "cá entre nós, Cachoeira", semelhante a um nó de marinheiro. O ferimento parece simples, um pequeno rasgão, mas, se não suturado, o paciente morre, explica o médico. É o chamado Código de Emergência Cirúrgica, que não se resolve em posto de saúde. Costurado o coração, o peito é fechado e o garoto, transferido para a UTI.

— A diferença entre nós e o mecânico é que mexemos nas peças com o motor ligado — brinca, agora relaxado, Cachoeira, que já foi massagista do Clube Esportivo Atlântico de Erechim e ainda vive naquela cidade, deslocando-se para a Capital nos plantões de fim de semana e feriados no HCR. Ele é marido de médica e pai de um filho e uma filha que também abraçaram a medicina.

Complicado, mesmo, é quando há dois pacientes graves. A prioridade é de quem já está "aberto", na mesa cirúrgica. O outro espera. Escolhas de Sofia são rotina em um hospital de trauma. Mas, pelo menos nesta noite, Cachoeira pode operar com calma.

E o menino? Até o amanhecer, continuava vivo, o que já é uma vitória diante de seu quadro clínico.

Depois da emergência, é necessário cuidar de outro inimigo invisível e não menos mortal para qualquer paciente, a infecção. A gravidade do ferimento é tamanha que as perguntas óbvias para quem se interna num hospital — nome, endereço, profissão — são postergadas. Kelvin Silveira (eis a sua identidade) é mais um adolescente negro e pobre vitimado em uma das guerras da periferia de Porto Alegre. Desta vez, a vida venceu: Kelvin recebeu alta na última segunda-feira, liberado para voltar às aulas da 8ª série e acalentar seu sonho de jogar no Inter.

Convivendo com a dor

A ambulância do Samu de Montenegro deixa no Cristo Redentor um idoso que levou um tombo de bicicleta e, agitado ao extremo, não fala coisa com coisa. O sintoma é de concussão cerebral, causada por provável fratura no crânio. Varlei, o paciente, exala cheiro de aguardente e não para na cama, tentando se levantar a todo instante. Com dores nas costelas, que também parecem fraturadas, intercala ai-ai-ais com xingamentos.

— Olha meu braço, sua filha da puta. Cadela, tira a mão de mim! — grita, com voz enrolada, o paciente, que ainda belisca uma das enfermeiras.

Elas estão acostumadas e respondem com calma e educação:

— Vamos tirar um raio X, meu amor. Te aquieta um pouco.

Sedativo injetado na veia, Varlei se acalma e dorme. Atado à cama com panos, para não fugir.

É hora do próximo caso, que não tarda a chegar.


Gritos são rotineiros, mas todos se condoem quando os lamentos vêm de uma criança. Enderson da Costa Martins, 10 anos, é o paciente das 21h. Atropelado por um ônibus no bairro Mário Quintana, onde mora, apresenta fratura no fêmur direito e no crânio. Fala sem parar, sintoma de chacoalhão no cérebro. A mãe, a auxiliar de cozinha Magali da Costa, luta para que se acalme. Pega na mão do guri, acaricia a cabeça. Um raio X mostra que a fratura é superficial, e o garoto parece não correr risco. Magali diz que o filho atravessava a rua correndo e não reparou na manobra do ônibus — felizmente, em velocidade baixa.

Hora de realinhar o fêmur. Para consolidar o maior osso do corpo humano, é necessário esticá-lo na posição correta. O médico Marcelo Casado, residente em traumatologia, aplica morfina em Enderson, que permanece acordado, mas deixa de sentir dor. Aí é o momento mais difícil: esticar a perna do garoto a partir do calcanhar e mantê-la imobilizada. O médico saca uma espécie de furadeira, coloca na ponta dela um grande pino de metal e perfura o osso da perna, até aparecer a haste do outro lado. O barulho parece o de uma broca de dentista — só que o aparelho tem o tamanho de um secador de cabelo. Praticamente não há sangue, porque só foram perfurados osso e pele. A partir do furo é possível prender a haste em fios que imobilizarão a perna de Enderson na mesma posição, vital para que a fratura se consolide. A mãe permanece a noite toda ao lado de Enderson, de mãos dadas com ele.

Os enfermeiros tiram a atadura do braço direito de um rapaz de 25 anos que foi ao hospital após brigar com a mulher e socar a vidraça de uma porta. O sangue começa a espirrar feito mangueira furada. O corte é da espessura de um dedo, a hemorragia não cessa, tendões aparecem em meio ao rasgão.

É caso para uma (bem-sucedida) cirurgia, mas nada que se compare à situação de um paciente internado desde quarta-feira.

Naquele dia, um homem de 40 e poucos anos desceu de uma ambulância e entrou caminhando no hospital, com uma faca encravada na região dos rins. Sua mulher teria enterrado os 30cm de lâmina em suas costas. A faca foi removida em cirurgia — não se retira lâmina sem auxílio médico, a pessoa pode sangrar até morrer. Melhor deixá-la comprimindo o ferimento.

O homem sobreviveu e já virou personagem dos causos contados pelos funcionários do HCR em horas de calmaria. Fotos batidas pelos socorristas, mostrando o ferimento cinematográfico, circulam de mão em mão.

Há uma ala específica para presos, no terceiro andar do HCR. Todo dia tem alguém ali, algemado à cama, após algum procedimento. Às vezes, falta lugar, como nesta sexta-feira. Antônio Fernando Lebanov, 65 anos — um dos presos mais antigos do sistema penitenciário gaúcho —, está desde as 14h esperando leito. Consegue às 20h30min. Condenado por homicídio e tentativa de homicídio, ele cumpre pena em Montenegro. Levou um tombo no chão molhado e quebrou uma perna. Geme de dor, recebe tranquilizante, dorme. Os agentes penitenciários aguardam pelo leito de Lebanov em pé. Alguns passantes estranham os homens armados no corredor. Os funcionários do HCR, não.

À meia-noite, chega outro preso, algemado por um PM. Está com o rosto amarrotado, sangrando e cheio de hematomas. O policial revela que o homem de 35 anos, com antecedentes por tráfico, quase foi linchado por uma multidão que o acusa de tentar estuprar duas crianças. Inerte em uma cadeira de rodas, é levado para uma cama e medicado, sempre algemado.


Foto: Guilherme Santos, Agência RBS

Um acidente de moto trouxe um sujeito ruivo e forte, Jáder, à emergência. Ele só lembra de ter bebido bastante. Está com clavícula, um braço e uma perna quebrados, além de suspeita de TCE (Trauma Crânio-Encefálico) — motivos que o farão gritar e gemer da 0h30min às 5h de sábado. O capacete dele jaz no chão ao lado da cama, amassado e embarrado, prova de que a queda não foi pequena.

Quando as enfermeiras fazem um círculo para retirar a roupa dele, Jáder profere palavrões. Uma das funcionárias perde a paciência:

— O senhor bebeu todas, nem se aguenta em pé. Seja homem! Já recebeu analgésico, agora se acalme!

Motoqueiros formam o elenco mais crítico entre os pacientes de trauma. O corpo deles funciona como um para-choque nos acidentes, portanto, estão mais sujeitos a ferimentos graves e amputações cirúrgicas, destaca o cirurgião vascular Márcio Pasa. Um dos chefes do plantão noturno, Pasa gosta de sua atividade, mas reconhece componentes insalubres.

— Como dar a notícia para alguém de que teremos de amputar? Difícil, muito difícil. Por vezes acordo e penso: quem vai morrer hoje? Quem vai perder uma perna? — lamenta.


Foto: Guilherme Santos, Agência RBS



A madrugada é chuvosa e gélida, mas quatro enfermeiros e três médicos suam em bicas. São 3h30min de domingo, 4 de maio. De joelhos sobre a cama, eles se revezam na mais antiga das manobras de ressuscitação, a massagem cardíaca. Comprimem uma mão contra a outra e dão poderosos empurrões no peito da paciente, na média de dois por segundo. Usam o peso do próprio corpo para aumentar a força. Ao fundo, luzes azuladas nos monitores e um gráfico amarelo mostram o ritmo dos batimentos cardíacos da idosa vítima de atropelamento.

O coração dela parou às 3h25min. A linha do monitor aparece reta, regular, nada bate naquele peito. Após os primeiros dois minutos de massagem, o coração volta a bater. O monitor esboça ruídos, bip, bip, enquanto o indicador gráfico exibe altos e baixos.

A alegria dos socorristas é efêmera. A mulher sofre uma segunda parada cardíaca, evidenciada pelo tuímmm contínuo do monitor. Sobe outro enfermeiro na cama, massagem por dois minutos. Cede a vez a um médico, mais dois minutos de batalha. E o coração volta a bater. O problema agora é a arritmia: as batidas superam 200 por minuto, quando o normal seriam 80. Depois vão caindo, caindo... Baixam de 60, 50, 40. Nervosismo geral, rostos crispados, lábios apertados. Pouco se fala, muito se age.

— Não vai dar, aplica adrenalina! — apela o médico mais velho, preceptor de todos aqueles jovens.

A injeção é aplicada em uma veia do braço. Feito uma bomba líquida, o hormônio corre pelas artérias da paciente e desperta o coração de sua letargia. Voltam os batimentos e, com eles, os sorrisos da equipe médica. Por pouco tempo.

Em segundos, a cena desoladora se repete: as batidas diminuem, diminuem, diminuem, até o tuímmm fatídico anunciar mais uma parada. O que está acontecendo?

Dois médicos experientes e um residente fazem uma rápida reunião. Tentam identificar qual a causa das paradas, enquanto os enfermeiros continuam a massagem cardíaca. Será a falha dos rins, comprometendo todo o corpo? Será uma hemorragia no abdômen, que passou despercebida na tomografia? Parece ser tudo isso junto, mas agora é correr contra o relógio. Não há condições para cirurgia, até porque a paciente não respira.Em vídeo, um pouco da rotina no hospital:

Antes da meia-noite, a vítima, Leonize Funari Camejo, 62 anos, estava não apenas alerta, mas conversando. Ela recebeu visita de um dos filhos e se queixou de dor nas costas, talvez sintoma de rins em mau funcionamento.

Leonize fora atropelada à tarde. O acidente foi uma sucessão de fatalidades: a avó levara a neta ao Carrefour situado junto ao viaduto Obirici, na Zona Norte. Após as compras, a idosa pagou e saiu, sem reparar que a neta ainda brincava. Ao atravessar a Avenida Plínio Brasil Milano, Leonize percebeu a falta da criança. Retornou correndo — e foi atingida por uma caminhonete. Sofreu fraturas no púbis, na tíbia e fíbula (ambas na perna esquerda). Ficou com manchas arroxeadas na coxa esquerda, prováveis sintomas de uma hemorragia que levaria às paradas cardíacas e que os exames não detectaram. Leonize ainda se preocupou em pedir a um PM que buscasse a neta, o que foi feito.

Por volta da meia-noite, Leonize para de falar e fica inerte. É colocada num respirador, e os enfermeiros chamam os três filhos dela. Começa a luta para tentar salvar sua vida. Após a primeira parada do coração, são 35 minutos de massagens cardíacas, breves batimentos, novas paradas. A lei manda que a ressuscitação ocorra por no mínimo 20 minutos. Médicos e enfermeiros sempre vão além.

— Uma vez fiquei uma hora massageando, me alternando com colegas — recorda a experiente enfermeira Sandra Regina Suita.

Às 3h58min, o médico chefe da equipe faz sinal de negativo. Todos olham para o chão, semblantes vazios. Chega o momento mais temido pelos profissionais da medicina: avisar os familiares. O médico chefe vai até o filho mais velho de Leonize, que espera no corredor. As palavras são cuidadosas, a frase é curta.

— Olha, sinto muito. Fizemos o possível. Tentamos reanimar tua mãe por 35 minutos, mas ela faleceu. Sinto muito, mesmo.

Trêmulo, o rapaz cobre o rosto com as mãos e cai num choro sentido, que comove a todos no corredor. Desta vez, a morte venceu.



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