segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

MATERIAIS CAROS SÃO RETIRADOS SEM CONTROLE DOS HOSPITAIS FEDERAIS

G1 FANTÁSTICO Edição do dia 01/02/2015


Ao todo, 98% das próteses vasculares dos hospitais federais foram retiradas sem documentação. Há próteses com valores acima de R$ 100 mil.




Há um mês, o Fantástico vem denunciando a máfia das próteses. Fornecedores que pagam propina, médicos que marcam cirurgias desnecessárias, hospitais que emitem notas superfaturadas. É a saúde transformada em negócio pela corrupção.

O Fantástico mostra mais um capítulo dessa triste realidade. O total descontrole nos almoxarifados de hospitais federais. Materiais caríssimos, comprados com dinheiro público, são retirados sem que se saiba quem retirou, por que e para qual paciente.

Depois da cirurgia em que teve uma das mamas retirada por causa de um câncer, Maria Elione Gomes ganhou um implante de silicone.

O que a costureira não sabia, até agora, é que pelos registros do hospital, ela saiu de lá, não com uma, mas com cinco próteses.

Fantástico: Prótese mamária de silicone. Saiu uma, duas, três, quatro, cinco.
Maria Elione: Meu Deus! Como explica isso?
Fantástico: Usaram o nome da senhora para tirar cinco próteses do almoxarifado do hospital.

O aposentado José Linhares lutava contra uma trombose na perna, um bloqueio na circulação do sangue. Para tentar evitar a amputação, que mais tarde acabaria acontecendo, os médicos colocaram um stent, um tubo minúsculo usado para melhorar o fluxo dentro da artéria.

Só que pelo prontuário, ele teria outros 12 stents no corpo.

Fantástico: Eu queria que o senhor contasse comigo. 1,2, ...,11, 12.
José: 12 vezes, 12 stents. Cada stent R$ 11 mil.

Toda vez que um paciente chega a um hospital e é internado ele ganha um número. É o prontuário médico. Se vai passar por uma cirurgia e precisa de uma prótese, por exemplo, alguém da equipe médica vai até o almoxarifado, preenche informações sobre o procedimento e retira o item que vai ser usado na operação.

As informações deixadas no almoxarifado e o número do prontuário geram uma AIH, Autorização de Internação Hospitalar. É com a AIH que o Ministério da Saúde controla o uso dos produtos oferecidos no SUS, o Sistema Único de Saúde.

Mas não é o que tem acontecido nos seis hospitais federais do Rio de Janeiro. Elione foi operada no Hospital Geral de Bonsucesso em 26 de junho de 2013.

Fantástico: Foi a cirurgia que a senhora fez?
Maria Elione: Foi.
Fantástico: Uma única vez?
Maria Elione: Uma única vez.

No mesmo dia, o número do prontuário dela foi usado para a retirada de outras quatro próteses, que ninguém sabe onde foram parar.

“Estou até tremendo, porque usaram meu nome. Isso não pode, tenho certeza que isso não pode. É contra a lei. Até porque eu não tenho cinco mamas”, afirma Maria Elione.

Com José, o uso indevido do prontuário foi feito bem depois da cirurgia.

Fantástico: A cirurgia para colocação do stent, o senhor se lembra a data?
José: Foi em 2011.
Fantástico: E a amputação?
José: A amputação foi em 2013.
Fantástico: No começo?
José: Foi em fevereiro.
Fantástico: A retirada desses stents é em outubro de 2013.
José: Outubro de 2013? Outubro de 2013 já estava em casa há muito tempo.

Doze stents desviados que passaram longe da fiscalização. Mas o descontrole é ainda mais grave, o Fantástico teve acesso a informações sigilosas do banco de dados do SUS, e os dados revelam que a fraude vai além de usar o número de um prontuário repetidas vezes.
Na maioria dos casos, não há sequer a preocupação de preencher papéis. Itens caríssimos saem dos almoxarifados sem nenhum tipo de informação: da cirurgia ou do paciente.

O levantamento analisou o período de janeiro de 2010 a dezembro de 2013. E levou em conta, principalmente, os materiais mais caros, como marca-passos de R$ 10 mil. E próteses cardiovasculares que passam de R$ 100 mil.

Pelos números das requisições deixadas nos almoxarifados, os auditores puderam confirmar a saída dos itens. Mas quase não encontraram informações sobre o destino do material.

Foram tiradas dos estoques, por exemplo, 1.202 próteses mamárias. Sendo 1.073 delas sem emissão da AIH. Isso significa, 89% do material circulando por aí sem controle.

No caso das próteses vasculares, como o stent do José, foram retirados 2.357 itens no período. Sendo 2.310 deles sem a AIH. Ninguém sabe onde estão 98% das próteses vasculares dos hospitais federais.

“Alguém levou isso para algum lugar”, afirma um médico. Ele foi gestor em um hospital federal. “Às vezes, o doutor leva para uma outra unidade que está faltando, tentando fazer o bem. Às vezes leva para uma outra unidade com o sentido de lucro. Acontece de tudo nas unidades federais você pode ter certeza que acontece de tudo”, afirma.

Ele conta que os desvios começam na compra do material. “Fizemos compras de um determinado produto, aproximadamente, umas 6 mil unidades e só chegaram 500, e foi atestado pelo responsável pelo almoxarifado de que todo o material tinha chegado”, diz

E reconhece que é ainda mais difícil detectar os erros na saída dos itens.

Fantástico: Como é que um material caríssimo desse como é que acontece de ele sair sem nenhum controle?

Gestor: Com a conivência da autoridade gestora. Então isso dá margem para tudo. Isso pode ser erro, pode ser desonestidade talvez, mas no mínimo é um descaso com o dinheiro público.

“Isso revela uma total falta de controle. No caso, do Ministério da Saúde, que é responsável por esses hospitais federais”, afirma o professor de medicina da USP Mário Scheffer.

O Fantástico procurou o Ministério da Saúde. A assessoria de imprensa do Ministério da Saúde informou que nos seis hospitais federais do Rio foram implantadas, em 2014, medidas para aprimorar o gerenciamento de material médico-hospitalar.

Mas agora em janeiro de 2015, o Fantástico conversou com uma funcionária de um almoxarifado e ouviu que o controle só aumentou de verdade depois que o Fantástico começou a exibir a série de reportagens sobre desvios e corrupção na saúde pública.

Fantástico: Auditoria é feita com frequência?
Funcionária: Bom, ultimamente tem dado um monte de salamaleque lá no Fantástico, aí aparece, né? Volta e meia a direção manda pedir tudo à gente.

O Ministério da Saúde explicou também que um dos mecanismos de controle implantados é a utilização de salas específicas para material de alto custo e que as denúncias desta reportagem serão investigadas.

O ministro da Controladoria-Geral da União anunciou que vai fazer uma auditoria. Ele afirmou que o descontrole pode atingir também as redes estaduais e municipais de saúde. “Estamos falando de um problema que pode ser muito maior ainda, nas demais unidades de saúde”, diz Valdir Moysés Simão.

“Nós estamos desperdiçando recursos que poderiam ser utilizados na melhoria da assistência no SUS”, afirma Mário Scheffer.

“Eu tenho um universo de cerca de 15 mil pacientes aguardando até oito anos para a realização de uma cirurgia. Quando eu tiro um insumo ou medicamento de alto custo, eu posso estar tirando a vida de um paciente que está aguardando em uma fila de espera”, diz o Defensor Público Federal Daniel Macedo.

Foi nessas pessoas que o José pensou quando soube dos 12 stents desviados no nome dele. “Me sinto mal mesmo, mal. Saber que pessoas precisando, necessitando e usaram lá. Agora não foi para dar para ninguém. Para fazer caridade, não foi, duvido que foi”, reclama o aposentado José Linhares.
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