quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

NO FRONT

ZERO HORA 27 de fevereiro de 2013 | N° 17356

TRAGÉDIA DE SANTA MARIA

A LUTA PELA VIDA


Habituado aos rompantes das emergências, Carlos Fernando Drumond Dornelles, 34 anos, precisou de apenas sete minutos, a partir de um telefonema às 3h43min, para deixar a cama e chegar à boate Kiss. Naquela madrugada de folga, o uniforme do socorrista do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) estava, como de costume, ao lado da cama.

– Não vi muitas pessoas feridas – comentou o taxista no trajeto de quatro quadras.

Médico formado pela Ulbra com passagem pelo Exército, Dornelles comprovou com o que via as palavras do colega Pedro Copetti ouvidas pouco antes: tragédia, desastre, feridos, terrível. De estetoscópio na mão, penetrou o caos que orbitava a porta da casa noturna expelindo fumaça, uma desordem de sirenes, bombeiros e sobreviventes, aos tropeços, carregando mortos e queimados.

– Muitos caminhavam como se fossem zumbis, manchados, com falta de ar – lembra o socorrista.

Logo avistou os companheiros de Samu. Com a experiência de uma missão de seis meses no Haiti, após o terremoto de 2010, o sepeense começava, perto das 4h de 27 de janeiro, o mais penoso de seus dias de trabalho. A jornada de um dos personagens centrais do salvamento, responsável por uma intrincada e eficiente logística de transporte aéreo e terrestre, se estenderia pelas 25 horas seguintes.

– Penso toda hora no que aconteceu. Vai fazer parte de mim para sempre.

Mentalmente, ele organizou o vaivém das ambulâncias

Dornelles auxiliou Copetti a entubar um jovem com insuficiência respiratória grave. Voluntários depositavam mortos e desacordados às portas da ambulância, num vaivém desesperado que não aceitava negativas.

– Jogaram duas meninas em óbito. Pedimos para que as retirassem, para botar gente que estava viva, mas eles não admitiam – conta.

Veículos civis paravam para oferecer ajuda. Em um táxi, foram colocados um ferido no assento do carona, dois no banco de trás e um no porta-malas. Solicitado a todo momento, Dornelles tomou a primeira decisão fundamental para o sucesso do esquema que ajudou a coordenar e que permitiria, até a noite, encaminhar 38 feridos, por via aérea e terrestre, a 10 hospitais do Estado. Delimitou uma zona de triagem e convocou policiais para afastar curiosos.

– Gostaria que todos se afastassem, vocês estão atrapalhando o atendimento – anunciou ao microfone de uma viatura policial.

Dornelles organizou mentalmente o fluxo de viagens das 10 ambulâncias que atendiam o local. Despachava para o Hospital de Caridade, a dois minutos dali, os casos mais graves. Do outro lado da Rua dos Andradas, começaram a ser dispostos os cadáveres. Eram 19, por volta das 4h30min. Policiais militares tentavam deter os mais exaltados, que insistiam em voltar ao interior da boate.

– Está saindo só gente morta e está entrando gente para morrer. Vamos tomar uma atitude – disse Dornelles para o enfermeiro Fabiano Miranda.

Às 5h45min, com capacete e máscara, Dornelles entrou na Kiss para atestar que não havia mais o que pudesse ser feito. Sob o calor que se assemelhava ao de um “dia de verão bem quente”, identificou uma ex-colega de trabalho com o facho da lanterna. Viu corpos paralisados na última tentativa de sobrevivência: um rosto enfiado no vaso sanitário, braços para dentro de um freezer. Na saída, encontrou o prefeito Cezar Schirmer (PMDB) e o deputado estadual Jorge Pozzobom (PSDB). Alguém lhe estendeu um celular.

– Qual é a situação? – perguntou um assessor, em nome do governador Tarso Genro.

– Não tem como precisar. Mandem o máximo possível de aparato aéreo e equipamentos de ventilação mecânica – respondeu Dornelles.

Capitão médico do Exército, Claudio Guimarães Azevedo foi abordado por um colega ao chegar ao Caridade, convulsionado pelo desespero de jovens em roupas de festa e familiares.

– Eu não acho minha filha, já procurei por tudo. Me ajuda a procurar a minha filha.

Azevedo se dispôs a auxiliar o médico em prantos, mas logo foi sugado pelo tumulto. Percebeu que deveria recorrer às lições de medicina de catástrofe, que jamais pensara que seriam úteis em um país sem guerras. Convocou profissionais para uma primeira reunião, às 7h15min. Distribuiu tarefas e rádios portáteis. A Dornelles, delegou a responsabilidade pela remoção de feridos:

– Você vai sentar naquela mesa ali. Não levanta dali.

Vagas de UTI foram improvisadas. Especialistas percorreram os corredores para uma primeira avaliação, classificando os doentes pela prioridade de transferência. Secretarias de Saúde de municípios do Interior congestionavam as linhas telefônicas oferecendo serviços. Às 7h35min, Dornelles contatou a Central de Leitos do Estado, passando a esboçar, manualmente, o complexo esquema que teria de gerenciar. Acionou conhecidos na tentativa de eliminar a burocracia.

– Preciso de aeronaves – comunicou a um tenente-coronel da Base Aérea de Santa Maria, às 7h45min.

– Quantos pacientes? Três, quatro? – questionou o interlocutor.

– No mínimo 50.

Ao longo do dia, quatro helicópteros Black Hawk e três aviões decolaram de dois pontos da cidade, orientados pelo primeiro-tenente aviador Yuri Carneiro de Souza, chefe da equipe de resgate do Esquadrão Pantera.

Os primeiros membros da Força Nacional do Sistema Único de Saúde (SUS), acionada em calamidades, chegaram no início da tarde. Com a sincronia das esferas municipal, estadual e nacional, somada à profunda comoção, o atendimento ficou mais ágil. Formalizou-se a centralização das operações no Caridade, com o Gabinete de Crise. Na opinião de Neio Lúcio Pereira, diretor técnico do Grupo Hospitalar Conceição, a organização das equipes locais foi determinante para o sucesso da operação.

– Todo mundo ficou abismado com o atendimento. Foi uma mobilização total. Se eu tivesse de dizer um nome chave, seria o do Dornelles. Ele só foi dormir porque o empurramos – avalia Pereira.

Naquela semana, dormiu de duas a três horas por noite

Dornelles estima ter realizado cem ligações do próprio celular no domingo. Entre chamadas recebidas e não atendidas, conta cerca de 300. Quando voltou para casa, às 5h15min de segunda-feira, estava afônico.

Naquela semana, Dorneles continuou coor­denando as transferências, dormindo duas ou três horas por noite. Perdeu cinco quilos. Acompanhou a última remoção, no dia 11. Em estado grave, Delvani Rosso, 20 anos, balbuciou “muito obrigado” inúmeras vezes no percurso até o aeroporto. Com queimaduras em 50% do corpo, o estudante disse lembrar do incêndio.

– Quem te salvou? – perguntou Dornelles.

– A ambulância – gesticulou Delvani com os lábios, inaudível, o respirador ligado à traqueia.

– Ambulância de quem?

– Do Samu.

Surpreso, o médico afastou a máscara e pediu que o paciente memorizasse suas feições e o visitasse após a alta. Dornelles acredita que Delvani seja o primeiro rapaz que entubou ao chegar à Kiss. Ao retornar à base, enviou um torpedo a um dos profissionais que recepcionaria Delvani na Capital: “Cuida bem desse menino. Ele nos deixou muito emocionados”. Quinze dias depois da tragédia, o socorrista chorou pela primeira vez.

Ontem, 22 dos 145 pacientes admitidos em 27 de janeiro permaneciam internados em Porto Alegre e Santa Maria. Delvani, ainda na UTI do Hospital de Pronto Socorro, mas já respirando sozinho, levantou e deu três passos.

LARISSA ROSO

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

O DOPING DAS CRIANÇAS


REVISTA ÉPOCA - 25/02/2013 10h33 - Atualizado em 25/02/2013 10h52

O que o aumento do consumo da “droga da obediência”, usada para o tratamento do chamado Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade, revela sobre a medicalização da educação?


ELIANE BRUM


Um estudo divulgado na semana passada pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) deveria ter disparado um alarme dentro das casas e das escolas – e aberto um grande debate no país. A pesquisa mostra que, entre 2009 e 2011, o consumo do metilfenidato, medicamento comercializado no Brasil com os nomes Ritalina e Concerta, aumentou 75% entre crianças e adolescentes na faixa dos 6 aos 16 anos. A droga é usada para combater uma patologia controversa chamada de TDAH – Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade. A pesquisa detectou ainda uma variação perturbadora no consumo do remédio: aumenta no segundo semestre do ano e diminui no período das férias escolares. Isso significa que há uma relação direta entre a escola e o uso de uma droga tarja preta, com atuação sobre o sistema nervoso central e criação de dependência física e psíquica. Uma observação: o metilfenidato é conhecido como “a droga da obediência”.

O boletim da Anvisa é uma indicação de que o uso abusivo do metilfenidato pode se tornar um problema de saúde pública no Brasil. A pesquisa é o ponto de partida para vários caminhos de investigação, inclusive jornalística. Por que Porto Alegre é a capital brasileira com maior consumo da droga? Por que o Distrito Federal é, entre as unidades da federação, a que registrou maior uso de metilfenidato? Por que Rondônia, entre os estados do norte, tem um consumo 13 vezes maior que o estado com menor consumo registrado? O que diferencia os médicos brasileiros, concentrados nas regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul, que mais prescrevem o medicamento no Brasil? E por que os três maiores prescritores, dois deles profissionais do Distrito Federal, são os mesmos nos três anos pesquisados? Em 2011, as famílias brasileiras gastaram R$ 28,5 milhões na compra da droga da obediência – R$ 778,75 por cada mil crianças e adolescentes com idade entre 6 e 16 anos. É preciso seguir as pistas e compreender o que está acontecendo.

A TDAH seria um transtorno neurológico do comportamento que atingiria de 8 a 12% das crianças no mundo. No Brasil, os índices são bastante discordantes, alcançando até 26,8% . Os sintomas considerados para o diagnóstico em crianças são: apresentar dificuldade para prestar atenção e passar muito tempo sonhando acordada; parecer não ouvir quando se fala diretamente com ela; distrair-se facilmente ao fazer tarefas ou ao brincar; esquecer as coisas; mover-se constantemente ou ser incapaz de permanecer sentada; falar excessivamente; demonstrar incapacidade de brincar calada; atuar e falar sem pensar; ter dificuldade para esperar sua vez; interromper a conversa de terceiros; demonstrar inquietação.

Um parêntese. A droga tem sido usada por jovens e adultos de todas as idades, na crença de que ela potencializaria a atenção e o rendimento. É difícil quem não conheça alguém que já usou o medicamento para fazer provas na escola ou na universidade, assim como em vestibulares e concursos. O uso é disseminado no ambiente profissional, utilizado por quem quer melhorar seu desempenho ou precisa terminar um trabalho em prazo curto. Também é popular entre aqueles que querem ficar “bombados” para uma balada. Alguns recorrem ao mercado ilegal, outros simulam os sintomas de TDAH nos consultórios médicos para conseguir a receita. Sobre esse tipo de consumo há unanimidade: é totalmente contraindicado.

Entre as considerações finais, os autores da pesquisa da Anvisa, Márcia Gonçalves de Oliveira e Daniel Marques Mota, afirmam:

- Os dados demonstram uma tendência de uso crescente no Brasil. No entanto, a pergunta que precisa ser respondida é se esse uso está sendo feito de forma segura, isto é, somente para as indicações aprovadas no registro do medicamento e para os pacientes corretos, na dosagem e períodos adequados. O uso do medicamento metilfenidato tem sido muito difundido nos últimos anos de forma, inclusive, equivocada, sendo utilizado como “droga da obediência” e como instrumento de melhoria do desempenho seja de crianças, adolescentes ou adultos. Em muitos países, como os Estados Unidos, o metilfenidato tem sido largamente utilizado entre adolescentes para melhorar o desempenho escolar e para moldar as crianças, afinal, é mais fácil modificá-las que ao ambiente. Na verdade, o medicamento deve funcionar como um adjuvante no estabelecimento do equilíbrio comportamental do indivíduo, aliado a outras medidas, como educacionais, sociais e psicológicas. Nesse sentido, recomenda-se proporcionar educação pública para diferentes segmentos da sociedade, sem discursos morais e sem atitudes punitivas, cuja principal finalidade seja a de contribuir com o desenvolvimento e a demonstração de alternativas práticas ao uso de medicamentos.

O documento pode ser lido na íntegra aqui.

Além do questionamento proposto pelos autores, outras perguntas podem e devem ser colocadas: existe um doping legalizado das crianças? A escola, em vez de olhar cada aluno a partir da sua história e de sua singularidade, está sendo agente de um processo de homogeneização e silenciamento de crianças e adolescentes considerados “diferentes”? Estaria a droga da obediência sendo usada como uma espécie de “método pedagógico” perverso? O que isso significa? E por que não há uma discussão mais ampla em toda a sociedade brasileira?

A controvérsia sobre a droga da obediência e o chamado Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) é grande. Por uma série de razões, porém, pouco chega à população. É comum ouvir nas ruas, nas escolas e nas festas infantis que alguma criança é “hiperativa”, já que o diagnóstico e a crença de que a suposta doença possa ser resolvida com uma droga se difundiu na sociedade. Para uma parcela significativa das pessoas, soa como uma daquelas verdades “científicas” inquestionáveis.

Na realidade, os questionamentos são muitos. Há quem denuncie que os diagnósticos são mal feitos, levando à prescrição equivocada do medicamento. Há quem defenda que a doença sequer existe – seria uma invenção promovida pelo marketing da indústria farmacêutica. Para colaborar com o acesso ao que poderia ser chamado de “o outro lado do TDAH”, elenquei algumas das principais críticas e ponderações sobre a patologia e o uso da droga, feitas por pesquisadores das áreas da medicina, psicologia, psicanálise e educação. Todos os artigos citados – exceto um, ainda inédito – tem livre acesso e podem ser lidos na íntegra na internet. O foco principal é a relação entre a droga/diagnóstico e a escola, explicitada de forma inequívoca pelo boletim da Anvisa.


1) A medicina e a definição da “normalidade”

A história da medicina é uma história também de como ela deixa de ser o estudo das doenças para passar a definir o que é a normalidade. “A medicina se atribui todo o universo de relações do homem com a natureza e com outro homem, isto é, a vida.

Legislando sobre hábitos de alimentação, vestuário, habitação, higiene, aplica a esses campos a mesma abordagem empregada frente às doenças. Adotando (assim) um discurso genérico, aplicável a todas as pessoas, porque neutro”, afirma Maria Aparecida Affonso Moysés, professora titular de Pediatria da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, em um artigo muito interessante, intitulado “A Medicalização na Educação Infantil e no Ensino Fundamental e as Políticas de Formação Docente” (leia aqui). “Com o consentimento da sociedade, que delega à medicina a tarefa de normatizar, legislar e vigiar a vida, estão colocadas as condições históricas para a medicalização da sociedade, aí incluídos comportamento e aprendizagem. (...) É preciso abolir as particularidades, o subjetivo, a imprecisão, para que o pensamento racional e objetivo se imponha. Não se esqueça que o discurso médico, nesse momento – aliás, o discurso científico, em qualquer momento – está afinado com as demandas dos grupos hegemônicos.”

A medicalização, segundo a pediatra, é resultado do processo de conversão de questões sociais e humanas em biológicas – transformando os problemas da vida em doenças ou distúrbios. É neste contexto que teria surgido uma doença que impediria a criança de aprender, com outros nomes antes de ser registrada como TDAH. É assim que se medicaliza a educação, transformando problemas pedagógicos e políticos em questões biológicas e médicas. “O discurso médico irá apregoar a existência de crianças incapazes de aprender, a menos que submetidas a uma intervenção especial – uma intervenção médica”, afirma. E conclui: “A atuação medicalizante da medicina consolida-se ao ser capaz de se infiltrar no pensamento cotidiano, ou, mais precisamente, no conjunto de juízos provisórios e preconceitos que regem a vida cotidiana. E a extensão (e a intensidade) em que esse processo ocorre pode ser apreendida pela incorporação do discurso médico, não importa se científico ou preconceituoso, pela população. A medicina constrói, assim, artificialmente, as ‘doenças do não-aprender-na-escola’ e a consequente demanda por serviços de saúde especializados, ao se afirmar como instituição competente e responsável por sua resolução. A partir deste momento, a medicina se apropriará cada vez mais do objeto aprendizagem. Sem mudanças significativas, apenas estendendo seu campo normativo”.

Em “Os Equívocos da Infância Medicalizada” , Margareth Diniz, professora da Universidade Federal de Ouro Preto, com doutorado em educação, explicita a diferença entre “medicar” e “medicalizar”: “Medicar pode ser necessário, desde que caso a caso. Já a medicalização é o processo pelo qual o modo de vida dos homens é apropriado pela medicina e que interfere na construção de conceitos, regras de higiene, normas de moral e costumes prescritos – sexuais, alimentares, de habitação – e de comportamentos sociais. Este processo está intimamente articulado à idéia de que não se pode separar o saber – produzido cientificamente em uma estrututa social – de suas propostas de intervenção na sociedade, de suas proposições políticas implícitas. A medicalização tem, como objetivo, a intervenção política no corpo social”.

2) A escola e o ciclo da medicalização da infância


O caminho que leva ao diagnóstico de TDAH e à prescrição da droga da obediência, entre os mais pobres e usuários da rede pública de ensino, inicia na escola, a partir das dificuldades de aprendizagem e/ou insubordinação de determinada criança ou adolescente. Como a família em geral não conseguiria dar uma resposta ao problema, a escola ou encaminha ao médico, ou aciona o conselho tutelar. Entre as crianças mais ricas, clientes do sistema privado de ensino, o ciclo é semelhante, com exceção de que estas não estão vulneráveis à tutela e à vigilância do Estado. Neste caso, a escola encaminha ao psicólogo e este ao neuropediatra – ou diretamente ao neuropediatra, que prescreve o medicamento.

Esta é a análise da psicanalista Michele Kamers, professora do curso de psicologia do Ibes-Sociesc, coordenadora dos cursos de especialização em psicologia hospitalar e da saúde e psicopatologia da infância e da adolescência do Hospital Santa Catarina, de Blumenau, e mestre em educação pela Universidade de São Paulo. No artigo intitulado “A Fabricação da Loucura na Infância: Psiquiatrização do Discurso e Medicalização da Infância”, ainda inédito, ela afirma que a escola se converteu em um mecanismo de inclusão da criança no campo do saber médico-psiquiátrico. “As escolas, as unidades de saúde e as clínicas privadas agenciam e legitimam a intervenção médica e farmacológica sobre a criança, fazendo com que a medicalização venha se convertendo na principal forma de tratamento utilizada para responder às demandas sociais realizadas pelas instituições de assistência à infância”, diz. “A medicina, juntamente com a assistência psicológica, social e pedagógica, forma uma rede de tutela e encaminhamentos múltiplos. A partir do momento em que a criança e sua família são capturadas, não conseguem mais sair.”

É corriqueiro, segundo Margareth Diniz, receber pais em busca de tratamento para seus filhos por exigência da escola. “Todos nós que nos ocupamos da clínica também estamos habituados com solicitações de tratamento de crianças a partir de uma exigência da escola em relação à sua inadaptação, ou inadequação às regras mais elementares de seu aprendizado e de sua socialização. Normalmente são os pais, mais especificamente as mães, que nos formulam esse pedido. O que torna esses pedidos curiosos é que, invariavelmente, trazem consigo um enunciado pedagógico nos seguintes termos: ‘A escola chegou à conclusão que esta criança necessita de um acompanhamento’”.

A psicóloga Renata Guarido, que defendeu uma tese de mestrado na Universidade de São Paulo intitulada “O Que Não Tem Remédio, Remediado Está: a Medicalização da Vida e Algumas Implicações do Saber Médico na Educação”, mostra como a criança passou de objeto da pedagogia a objeto da medicina. Renata afirma que a medicina passou a determinar quem era “educável ou ineducável”: “Vemos as crianças e suas famílias submetidas ao poder exercido pela constituição de um domínio do saber médico-psicológico, sem que o contexto de seus sofrimentos, bem como sua possibilidade de tratamento, sejam orientados para outras formas de consideração da subjetividade, que não a normalizante e de ‘treinamento’”.

Em sua análise, Renata reforça como são corriqueiras hoje nas escolas as cenas em que professores e coordenadores dão o diagnóstico de TDAH diante de determinados comportamentos das crianças e adolescentes, encaminhando-os para avaliação psiquiátrica, neurológica e psicológica. Também já faz parte da rotina professores e outros agentes escolares perguntarem aos pais de um aluno em tratamento se ele foi corretamente medicado naquele dia. “Tais procedimentos nos permitem entrever que estão crentes de que a variação no uso do remédio é responsável pela variação dos comportamentos e estados psíquicos das crianças, e que esta não teria nenhuma relação com variações, mudanças ou experiências no interior do cotidiano escolar. (...) Ao assumir e validar o discurso médico-psicológico, a pedagogia não deixa de fazer a manutenção dessa mesma prática, desresponsabilizando a escola e culpabilizando as crianças e suas famílias por seus fracassos”.

3) A criança como objeto, não mais como sujeito

Entre as principais críticas feitas por aqueles que alertam para o processo de medicalização da infância – e especificamente sobre o TDAH e a droga da obediência – está a constatação de que as crianças deixam de ser escutadas na sua singularidade, como um protagonista que tem uma história e está inserido num contexto familiar e social, para se tornar um objeto com uma falha no corpo, sujeito à intervenção e à correção por medicamentos. Assim, as crianças e adolescentes têm sido calados naquilo que estão tentando dizer a pais e professores, em nome de um ideal de “normalidade” determinado pelo olhar médico e legitimado e reproduzido pela escola – e também pelos dispositivos de vigilância do Estado. O que se cala são os conflitos – que deveriam ser os propulsores do ato de educar.

Em O Livro Negro da Psicopatologia Contemporânea (Via Lettera, 2011), o psicanalista Alfredo Jerusalinsky escreve um capítulo intitulado “Gotinhas e comprimidos para crianças sem história – uma psicopatologia pós-moderna para a infância”. Ele afirma: “Não se questiona o que quer dizer este ponto, esta palavra ou este gesto fora do lugar. (...) Na trajetória que estamos descrevendo, foi se apagando esse esforço por ver e escutar um sujeito, com todas as dificuldades que ele tivesse, no que tivesse para dizer, e foi-se substituindo o dado ordenado segundo uma nosografia (descrição das doenças) que apaga o sujeito. (...) É assim que os problemas deixam de ser problemas para serem transtorno. É uma transformação epistemológica importante, e não uma mera transformação terminológica. Um problema é algo para ser decifrado, interpretado, resolvido; um transtorno é algo a ser eliminado, suprimido porque molesta. Os nomes das categorias não são inocentes”. Escrevi sobre este livro na coluna “Os Robôs Não Nos Invejam Mais”, que pode ser lida.

Em artigo já citado, Renata Guarido mostra que não é calada apenas a voz dessas crianças e adolescentes classificados como fora do padrão de uma pretensa normalidade. Mas até mesmo o seu nome é apagado. “Não é incomum observar, nas unidades de saúde ou mesmo nas escolas, que o nome do paciente ou do aluno seja substituído por sua classificação diagnóstica – estranha nomeação dos indivíduos que põe em relevo o lugar que ocupam na escala normal”, diz Renata. “A medicalização em larga escala das crianças nos tempos atuais pode ser lida também como apelo ao silêncio dos conflitos, negando-os como inerentes à subjetividade e ao encontro humano. Que o discurso pedagógico contribua para a manutenção desse tipo de recurso deve ser objeto constante de crítica em direção à possibilidade de que o lugar do ato educativo seja redefinido.”

Em “Hiperatividade: o ‘Não Decidido’ da Estrutura ou o ‘Infantil’ ainda no Tempo da Infância”, as psicanalistas Viviane Neves Legnani, professora da Universidade de Brasília (UnB), e Sandra Francesca Conte de Almeida, professora da Universidade Católica de Brasília, refletem sobre a TDAH a partir da descrição de um caso concreto. Elas afirmam : “Nossa experiência com escolas permitiu observar que muitos professores se servem dos indicadores descritivos que acompanham o diagnóstico de TDAH para sustentar uma prática pedagógica ‘didaticamente planejada’ para lidar ‘com os difíceis alunos portadores de hiperatividade’. O preço deste planejamento, no entanto, nem sempre é considerado: a impossibilidade de a criança encontrar o seu lugar na escola, a partir de sua singularidade. Como consequência da padronização pedagógica, ‘cientificamente’ estruturada, tem-se que o educador não escuta e não legitima a palavra dita pela criança, já que esta é vista como ‘doente’ e, portanto, incapaz”.

4) Ninguém se responsabiliza – ou por que a medicalização prospera

Não é apenas a escola que se desresponsabiliza, quando aquilo que pertence ao humano é tratado como patologia, mas também a criança e o adolescente, na tarefa de criar uma vida. Ao serem classificados como doentes ou portadores de um transtorno, e ao introjetarem este ser/estar no mundo como doentes ou portadores de um transtorno, é o diagnóstico que lhes determina o destino. Na hipótese de realizar qualquer conquista, ela é computada na conta da droga. Em “O Sujeito Refém do Orgânico” , Renata Guarido afirma: “Crianças e adultos, sendo desresponsabilizados de sua implicação com aquilo que lhes acontece, tornam-se também impotentes para atuarem sobre seus sofrimentos e aprendizados. E a impotência é então mais um efeito deste discurso biológico. Só é visto como potente o especialista que saberia o que fazer diante do diagnóstico que profere. Sendo o aprendizado descrito como efeito do funcionamento cerebral, da estimulação correta deste órgão que nos governa, temos sua descrição reduzida a uma dimensão privada, que ocorre no interior do indivíduo e não a partir do laço entre dois ou mais sujeitos. Ou seja, o aprendizado perde o caráter de ser fruto da ação humana, dimensão do encontro na pluralidade própria do mundo público, onde produzimos história”.

Margareth Diniz analisa por que a aceitação desse discurso ecoa na sociedade e é por ela reproduzido: “A criança e o adolescente esperam do outro que lhe responda algo acerca do enigma de sua existência, e os outros esperam das crianças que se conduzam na vida de modo a responder aos seus ideais. A fim de salvar os pais de tamanha angústia diante do não saber, surgem as tentativas de tornar científicas as respostas a estas questões, na busca de aplacar o mal-estar. A ciência começa a forjar um saber que não pertence nem ao pai, nem a mãe. Estes são levados a interferirem cada vez menos na educação dos filhos. Entra em cena a figura dos especialistas, autorizados principalmente pelo discurso da mãe, que demonstra um verdadeiro fascínio pela promessa de um saber total, sem furos”.

Não são apenas os professores, mas também os pais que passaram a exigir diagnóstico e medicamento para calar os conflitos na escola e dentro de casa. Afinal, é muito mais fácil lidar com uma “doença”, quase uma fatalidade, que diz respeito apenas ao funcionamento de um corpo e para a qual existiria uma pílula milagrosa, do que escutar o que uma criança ou um adolescente está dizendo com seu comportamento. “Os pais acusam as escolas de rotular suas crianças de hiperativas indiscriminadamente, antes mesmo de obter um diagnóstico médico, mas há relatos de que também alguns pais impacientes andam utilizando o diagnóstico de hiperatividade como desculpa para entupir seus filhos de remédio e mantê-los ‘sossegados’, daí que o medicamento tenha sido batizado por ‘droga da obediência’”, afirma Margareth. “Isso os desculpabiliza por não estarem dando conta de impor limites aos filhos, por exemplo, em relação à hora de dormir ou de desligar seus computadores e jogos eletrônicos.”

5) O marketing da indústria farmacêutica


O transtorno de hiperatividade pode ser um daqueles casos em que a droga ajuda a moldar o diagnóstico. Críticos da medicalização afirmam que não é comprovada a existência de uma doença que só altere o comportamento e a aprendizagem. Neste sentido, a disseminação do diagnóstico de TDAH inverteria a lógica da medicina, na qual seria preciso primeiro comprovar a doença e depois tratá-la. O fenômeno obedeceria mais à lógica do mercado do que a da saúde – com a relação próxima e, em alguns casos, promíscua, entre laboratórios e médicos. “A ligeireza (e imprecisão) com que as pessoas são transformadas em anormais é diretamente proporcional à velocidade com que a psicofarmacologia e a psiquiatria contemporânea expandiram seu mercado. Não deixa de ser surpreendente que o que foi apresentado como avanço na capacidade de curar tenha levado a ampliar em uma progressão geométrica a quantidade de doentes mentais”, alertam Alfredo Jerusalinski e Silvia Fendrik em O Livro Negro da Psicopatologia Moderna.

“A produção de saber sobre o sofrimento psíquico encontra-se associada à produção da indústria farmacêutica de remédios que prometem aliviar os sofrimentos existenciais. O consumo em larga escala dos medicamentos e o crescimento exponencial da indústria farmacêutica tornam-se elementos indissociáveis do exercício do poder médico apoiado em um saber consolidado ao longo do século XX”, analisa Renata Guarido. “Se a psiquiatria clássica, de forma geral, esteve às voltas com fenômenos psíquicos não codificáveis em termos do funcionamento orgânico, guardando espaço à dimensão enigmática da subjetividade, a psiquiatria contemporânea promove uma naturalização do fenômeno humano e uma subordinação do sujeito à bioquímica cerebral, somente regulável por uso de remédios. Há aí uma inversão não pouco assustadora, pois na lógica atual de construção diagnóstica, o remédio participa da nomeação do transtorno. Visto que não há mais uma etiologia (estudo das causas da doença) e uma historicidade a serem consideradas, pois a verdade do sintoma/transtorno está no funcionamento bioquímico, e os efeitos da medicação dão validade a um ou outro diagnóstico.”

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Estes cinco pontos são apenas algumas pistas para compreender o crescimento do Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade entre as crianças e adolescentes e a disseminação da droga da obediência. Dito de outro jeito, questionar o aumento dos “anormais” nas escolas brasileiras. Ou dos “desobedientes”. A falta de espanto de pais e professores diante do fenômeno mostra como a medicalização está naturalizada na sociedade brasileira. Afinal, parte destes pais e professores também fazem, no seu próprio cotidiano, o uso de drogas legais para silenciar suas dores humanas. Por que acreditariam que com seus filhos e alunos seria diferente? Drogar-se, legalmente, é uma marca da nossa época.

Ninguém sabe quais serão os efeitos a longo prazo do uso contínuo do metilfenidato sobre o cérebro em formação das crianças. O que acontecerá no futuro com essa geração legalmente drogada ainda é uma incógnita. Pelo menos, valeria a pena pensarmos no presente: por que estamos dopando crianças e adolescentes em vez de tentar escutá-los e entendê-los em sua singularidade? E o que isso diz sobre nós, os adultos?




Eliane Brum, jornalista, escritora e documentarista. Autora de um romance - Uma Duas (LeYa) - e de três livros de reportagem: Coluna Prestes – O avesso da lenda(Artes e Ofícios), A vida que ninguém vê (Arquipélago, Prêmio Jabuti 2007) e O olho da rua - uma repórter em busca da literatura da vida real (Globo).
elianebrum@uol.com.br
Twitter: @brumelianebrum
(Foto: Lilo Clareto/ Divulgação)

O ENDIVIDAMENTO DAS SANTAS CASAS


ZERO HORA 25 de fevereiro de 2013


Não é preciso grande esforço
para concluir queas Santas Casas
não têm como sobreviver à sangria
que vem sofrendo

PAULO BROSSARD*

Faz alguns dias, foram divulgados alguns dados envolvendo o Serviço Único de Saúde, SUS, que não são lisonjeiros, antes são preocupantes, na medida em que têm se deteriorado os serviços que dele dependem, como o da saúde, cada vez fica mais difícil e oneroso. Assim, em 2004, os hospitais públicos respondiam por pouco mais de 41% das internações pelo SUS, os hospitais privados sem fins lucrativos, instituições filantrópicas e Santas Casas, por quase 40%, e com 18,7% as entidades privadas com fins lucrativos; em 2011 estas instituições particulares diminuíram sua participação em 10,2% do total das internações: hoje, as Santas Casas e os demais hospitais filantrópicos cobrem 44% das internações, enquanto os hospitais públicos atingem 45%. O mais significativo, porém, é revelado pelo endividamento das Santas Casas: em 2005 o montante da dívida aumentou para R$ 1,8 bilhão, em 2009 ela passou para R$ 5,9 bilhões, e em 2011 atingiu a casa dos R$ 11 bilhões.

Não é preciso dizer que o serviço em tela não poderá manter-se nesse crescente ritmo de endividamento e a causa desse desequilíbrio é sabido e consabido: se em 2011 gastavam R$ 14,7 bilhões com os serviços, enquanto a retribuição do SUS não passa dos 65% do total despendido, o déficit foi de R$ 5,1 bilhões. O que vem de ser exposto não passa do esboço de uma realidade, e de uma realidade que se agrava dia a dia. Ainda uma vez não será temeridade antever que a situação em causa não pode manter-se por muito tempo e em ocorrendo a falência dos serviços de saúde, os efeitos serão catastróficos. Se hoje os números divulgados são constrangedores, amanhã serão desastrosos, até porque o aumento deles é inevitável em razão de vários fatores a partir do crescimento da população.

Outrossim, ocorreu-me lembrar que os progressos de medicina a partir de metade do século passado foram extraordinários, o número de especialidades profissionais se multiplicou, mas o instrumental correspondente aos progressos científicos tem de acompanhá-los, o que envolve constantes investimentos; a cada avanço alcançado surgem duas necessidades. E o fluxo não para.

Segundo os entendidos, o ano de 2013 começou com o endividamento de R$ 12 bilhões e deverá encerrar-se com endividamento de cerca de R$ 17 bilhões, uma vez que, a remuneração não passa de 65% da despesa. Não é preciso grande esforço para concluir que as Santas Casas e os hospitais beneficentes não têm como sobreviver à sangria que vem sofrendo; de outro lado, levando em consideração os hábitos da administração (que só acorda quando o caso se torna insuportável, como no caso da desindustrialização da metalurgia, do prépânico da indústria automobilística e depois dos eletrodomésticos) só quando as Santas Casas forem levadas à paralisação que a administração pública vai agir, enquanto os números não cessaram de crescer. Muitos aspectos do problema poderiam ser anexados a esta apertada síntese, mas deliberadamente fico no mínimo, desejando que a proximidade das eleições e a sedução da reeleição possam tirar da letargia a administração ronceira.


* Jurista, ministro aposentado do STF

TERROR NA UTI

ZERO HORA 25 de fevereiro de 2013


EDITORIAL

As denúncias de que uma médica intensivista vinha apressando a morte de pacientes internados na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) de um hospital de Curitiba chocam por desvendar sem rodeios os riscos enfrentados por quem não tem qualquer meio para se defender _ no caso, evidentemente, de uma anomalia como essa. Por isso, as providências a serem tomadas a partir de agora diante desse episódio macabro não devem se limitar às investigações policiais e a uma eventual abertura de processo por parte do Conselho Federal de Medicina, que tem o poder inclusive de cassar o exercício profissional da acusada, se for o caso. 

É preciso que não apenas o hospital de Curitiba, mas todos os demais do país com alas de tratamento intensivo revisem suas rotinas, sejam transparentes e procurem evitar que decisões sobre o futuro de pacientes na fronteira entre a vida e a morte continuem a ser tomadas por uma única pessoa.

No caso específico, chama a atenção a elevada quantidade de suspeições sobre a responsável pela UTI que, mesmo assim, não se mostraram suficientes para sustar de imediato ações hoje sob questionamento. Só a partir do momento em que uma paciente conseguiu redigir um bilhete à filha pedindo sua retirada do local para não ser morta é que as investigações tiveram início. Desde então, multiplicaram-se os depoimentos de enfermeiros denunciando o mau uso de recursos como ventilação mecânica e medicamentos no hospital. Ao mesmo tempo, vieram à tona declarações atemorizantes da profissional, como "Quero desentulhar a UTI, que está me dando coceira".

Por razões históricas, que incluem sempre falta de disposição política para tratar a saúde pública no Brasil como questão prioritária, pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS) estão longe de receber, como regra, o tratamento humanitário a que têm direito. Quando a esses problemas se somam deformações absurdas como as denunciadas em Curitiba, é mais do que hora de se proceder a uma revisão geral de procedimentos nesta área. A vida de seres humanos não pode ficar na dependência de profissionais que manifestem desequilíbrio emocional ou mental. Ainda que ninguém deva ser prejulgado, são tantos os indícios de irregularidade grave na UTI curitibana que o próprio sigilo do inquérito policial deveria ser suspenso, para que mais pessoas se encoragem a depor e para que um episódio tão horroroso amplie a transparência dos procedimentos hospitalares em todo o país.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

APENAS UM MÉDICO PARA CADA MIL HABITANTES


ZERO HORA ONLINE 18/02/2013 | 14h18

Demografia Médica no Brasil

Saúde pública tem um médico para cada mil habitantes, aponta estudo

A pesquisa do Conselho Federal de Medicina mostra que enquanto nos serviços públicos a razão é de um 1,11 médico para cada mil habitantes, a relação geral é de dois para cada mil


A taxa de médicos por habitantes no Sistema Único de Saúde (SUS) é a metade da taxa média apresentada no país, revela estudo "Demografia Médica no Brasil", divulgado nesta segunda-feira pelo Conselho Federal de Medicina. O trabalho mostra que enquanto nos serviços públicos a razão é de um 1,11 médico para cada mil habitantes, a relação geral é de dois para cada mil.

— Mesmo considerando as limitações dos registros, podemos dizer que, para um sistema de saúde público e universal, a presença de médicos no SUS é insuficiente —avaliou o coordenador do trabalho, Mário Scheffer.

De acordo com o Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde, atuam no SUS 215.640 médicos, o equivalente a 55,5% dos 388.015 profissionais registrados no país. O estudo mostra que o Estado com a menor taxa é o Pará, onde existe 0,5 médico no serviço público para cada mil habitantes. No Maranhão, a razão é de 0,52 e em Minas Gerais, de 0,75. A Unidade da Federação com melhores indicadores são o Distrito Federal, com 1,72; e Rio de Janeiro, com 1,58.

As desigualdades também estão estampadas quando se analisam números gerais, ou seja, do atendimento público e privado de saúde. Dezesseis Estados, todos no Norte, Nordeste e Centro-Oeste apresentam uma relação de médicos por mil habitantes inferior a 1,5 — abaixo, portanto, da média brasileira. Amapá, Pará e Maranhão trazem índices comparáveis a países africanos: 0,95; 0,84 e 0,71, respectivamente. Indicadores bem distintos dos primeiros colocados. O Distrito Federal, por exemplo, traz a razão de 4,09 médicos por 1.000 habitantes; seguido pelo Rio de Janeiro, com 3,62; e São Paulo, com razão de 2,64.

Apesar das dificuldades enfrentadas nas cidades mais distantes, o trabalho mostra que o país nunca teve tantos médicos quanto agora.

— O que se vê é a desigualdade na distribuição — avaliou Scheffer.

Para o autor do estudo, conhecer as diferenças é essencial para orientar o debate sobre políticas de incentivo para ampliação da oferta de profissionais.

— As desigualdades indicam que o aumento global do quantitativo de médicos por si só, sem mudanças substantivas nos rumos do sistema de saúde, — a começar pela solução do subfinanciamento público e pela regulação mais eficiente do mercado de planos de saúde - não garantem a disponibilidade de médicos nos locais, nas especialidades e nas circunstâncias em que hoje há carência de profissionais — completa.

O estudo indica ainda que a localização do curso de medicina não é fator determinante para fixação dos médicos. De acordo com o trabalho, a maioria se estabelece nos grandes centros, em busca de oportunidades de emprego, melhores salários, condições de trabalho, formação, crescimento profissional e condições de vida para a família.

O trabalho, que foi patrocinado pelo Conselho Federal de Medicina e o Conselho Regional de Medicina de São Paulo, acompanhou entre 1980 e 2009 a movimentação de 225.024 médicos. Entre os dados analisados estavam desde o local de nascimento e graduação até registros e cancelamentos nos conselhos regionais de medicina. De acordo com trabalho, 107.114 médicos se graduaram em local diferente daquele onde nasceu. Desse grupo, 39.390 (36,8%) retornaram ao município de onde saíram.

As capitais de São Paulo e do Rio de Janeiro, juntas, são responsáveis por cerca de um terço desse porcentual de retorno. Do grupo dos 107.114 médicos, 27.106 (25,3%) ficaram na localidade onde se graduaram. Também nestes casos, são os centros urbanos que exercem atração sobre os egressos das escolas médicas. Cerca de 60% dos que ficaram onde se graduaram, permaneceram em sete capitais (Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre, Recife, Belo Horizonte, Salvador e Curitiba). Os outros 40.618 (37,9%) que se graduaram em local diferente de onde nasceu, estão hoje exercendo sua atividade ou residindo em outro lugar, diferente daquele onde nasce.

A preferência por grandes centros, especialmente o Sudeste, é verificada tanto entre médicos formados no Brasil quanto no Exterior. Um indício, na avaliação de Scheffer, de que eventuais flexibilidades de revalidação de diplomas de profissionais formados no Exterior tenham pouco efeito prático para combater o problema da falta de profissionais em locais mais afastados.

— A concentração dos médicos acompanha a existência de serviços de saúde e de outros profissionais, principalmente de dentistas e enfermeiros — disse Scheffer.


AGÊNCIA ESTADO

SANTA CASAS ASFIXIADAS

O Estado de S.Paulo
18 de fevereiro de 2013 | 2h 06

OPINIÃO

A despeito do imenso problema social que causará e do caos que provocará no Sistema Único de Saúde (SUS), um eventual colapso das Santas Casas e dos hospitais filantrópicos decorrente de dificuldades financeiras crescentes não surpreenderá quem acompanha a situação da saúde pública no País. Trata-se de um problema antigo, de causas perfeitamente diagnosticadas, e que se agrava a cada dia, mas para o qual as autoridades responsáveis - em boa parte por comodismo - não deram e continuam a não dar a atenção que merece. O preço que o País terá de pagar, caso os problemas se agravem a ponto de a situação se tornar insustentável num futuro próximo, certamente será maior do que o custo de uma solução racional, que ainda é possível adotar.

A Constituição estabeleceu que a saúde é um direito fundamental do cidadão e, para garanti-lo, sem dispor de estrutura própria suficiente para isso, o Estado brasileiro estabeleceu o que deveria ser uma parceria com as instituições filantrópicas. Estas responderam bem à proposta de parceria e, por isso, sua presença nas operações do SUS é cada vez maior.

Em 2004, por exemplo, os hospitais públicos respondiam por 41,4% das internações pelo SUS, os hospitais privados sem fins lucrativos (Santas Casas e instituições filantrópicas), por 39,9% e os privados lucrativos, por 18,7%. Por causa da remuneração inadequada dos serviços, os hospitais particulares reduziram sua participação para 10,2% do total das internações em 2011, de acordo com dados do Ministério da Saúde utilizados no relatório da subcomissão especial da Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados, que discutiu o problema. Em contrapartida, aumentou a participação dos hospitais públicos e dos privados não lucrativos, para, respectivamente, 45,0% e 44,8%.

Hoje, as Santas Casas e os hospitais filantrópicos têm a mesma importância dos hospitais públicos no atendimento aos pacientes do SUS. Os dados recentes mostram também o que poderia acontecer no sistema público de saúde caso as Santas Casas deixassem de operar por absoluta incapacidade financeira.

A crise nas finanças das Santas Casas é conhecida há vários anos, e, sem medidas adequadas por parte dos responsáveis pelos programas de saúde pública, só piora. Em 2005, a dívida dessas instituições era estimada em R$ 1,8 bilhão, em 2009 saltou para R$ 5,9 bilhões e, em 2011, alcançou R$ 11,2 bilhões, de acordo com o relatório da subcomissão formada na Câmara dos Deputados. Mantido o ritmo de crescimento anual desse período, de cerca de 35% ao ano em valores nominais, deve ter alcançado R$ 15 bilhões no fim do ano passado (os dados consolidados ainda não foram divulgados).

O simples exame dos custos dos serviços prestados pelas entidades filantrópicas ao SUS em 2011 e da receita com os serviços prestados não deixa dúvidas quanto à causa do crescimento da dívida. Em 2011, essas entidades gastaram R$ 14,7 bilhões com os serviços, mas sua remuneração, pelo SUS, ficou em R$ 9,6 bilhões. Isso quer dizer que o pagamento do SUS cobre apenas 65% dos gastos desses hospitais. Só em 2011 (não há dados para 2012), o déficit foi de R$ 5,1 bilhões. A defasagem é maior para procedimentos considerados de média complexidade.

Reportagem do jornal O Globo (10/2) mostra que, sem recursos financeiros, hospitais têm adiado cirurgias, enfrentam ameaças de greve, carecem de materiais e chegam a suspender suas operações.

Essenciais para o SUS, as Santas Casas são insubstituíveis em muitas comunidades. Do total de 2,1 mil estabelecimentos hospitalares sem fins lucrativos, 56% estão em cidades com até 30 mil habitantes e são o único hospital em quase mil cidades.

Evitar o agravamento de sua crise exige o reajuste imediato da tabela de pagamento do SUS para cerca de 100 procedimentos, mas, até agora, não há previsão do governo para a correção desses valores, reconheceu o secretário de Atenção à Saúde, Helvécio Magalhães. O governo abriu uma linha de crédito no BNDES para esses hospitais, mas, já muito endividados, eles temem contrair novas dívidas. Sua saúde financeira aproxima-se do ponto crítico.

sábado, 16 de fevereiro de 2013

ESTELIONATO NA SAÚDE

ZERO HORA 16 de fevereiro de 2013 | N° 17345, ARTIGOS
Rocardo Oliva Willhelm*



O crime de estelionato atenta contra o patrimônio. O estelionato é um crime que tem como característica a astúcia, o engodo e a picardia do delinquente, estando previsto no artigo 171 do Código Penal.

Esse crime sujeita o infrator à pena de reclusão de um a cinco anos. A definição de saúde pela Organização Mundial da Saúde, considera que se trata de estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doenças. Esta definição tem sido alvo de inúmeras críticas, pois definir a saúde como um estado de completo bem-estar faz com que a saúde seja algo ideal, inatingível.

Esta definição tem possibilitado ao Estado tratar a saúde como se fundamental e unicamente deva ser feita promoção de saúde deixando a parte curativa, preventiva e farmacêutica em segundo plano. Ocorre de maneira sistemática a desobediência da Constituição brasileira de 1988, que assegura a todas as pessoas o direito à saúde em todos os níveis, promoção, prevenção e curativa.

Os médicos e entidades da saúde, Ministério Público, pacientes e seus familiares alertam sobre as más condições de trabalho, sobrecarga e péssimas remunerações para os profissionais da saúde, em especial aos médicos. A gestão da saúde impressiona pela negligência e incompetência, pois os gestores são indicações políticas, na maioria das vezes sem o conhecimento da área, compromissados apenas com a ideologia e ação partidária.

A falta de bom senso e humildade faz com que não ouçam quem presta serviços na área, conhece os problemas de perto e poderia apontar possíveis soluções. Esta má gestão da saúde em todos os níveis nos leva à certeza de que estamos próximos ao caos da assistência, em que poucos possuem ganhos significativos e a maioria, povo brasileiro e os médicos, são verdadeiros perdedores.

Os profissionais da saúde, desolados e desamparados, abandonam consultórios, clínicas, ensino e a profissão por falta absoluta de condições de trabalho e ganhos insuficientes, procurando outra atividade laboral. Além disso, o atendimento médico, hoje, é uma atividade de alto risco devido à judicialização crescente e irreversível. A relação custo benefício e riscos da atividade médica promovem, de forma cada vez mais crescente, a desistência dos profissionais.

Estamos assistindo ao resultado final dos maus-tratos dispensados à saúde por políticas perversas e por gestores não comprometidos com a meta de qualificar cada vez mais o atendimento. Alguns procuram cargos administrativos com o objetivo cristalino de sair da linha de frente, que é o atendimento ao paciente, para o qual foi treinado em um investimento de no mínimo 20 anos. Infelizmente, nossa sociedade deve parar e repensar o que queremos na saúde e como queremos que seja gerenciada. Se não mudarmos esta saúde eleitoreira que demonstra incompetência gerencial, veremos em breve o grande apagão da saúde no Brasil.

*CONSELHEIRO DO CREMERS

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

FALSAS PROMESSAS NA SAÚDE


ZERO HORA 06 de fevereiro de 2013 | N° 17335. ARTIGOS

Roberto Luiz D'Ávila*



No Brasil da atualidade, na área da saúde, vê-se o renascimento das falsas promessas que não se dobram aos argumentos lógicos. Preocupa-nos ver importantes setores da sociedade embarcarem nessa jornada insólita, considerando-se que saúde pública se faz com investimentos contínuos e gestão competente. Pela própria complexidade do tema, as soluções mirabolantes não têm espaço.

Em janeiro, mais uma vez, o governo federal simplificou a questão da ampliação do acesso à saúde, atrelando-a à suposta falta de médicos. Para tanto, fez aliados entre os recém-eleitos, que, pressionados, passaram a defender a importação de profissionais. Essa foi a tônica de recente manifestação da Frente Nacional dos Prefeitos, realizada em Brasília.

Não somos contra essa medida, desde que os portadores de diplomas obtidos no Exterior sejam submetidos ao Revalida. Esta é a solução para garantir o ingresso no país de profissionais minimamente preparados para atender nossa população, haja vista que este exame mede com a mesma régua o candidato formado na América Latina, na Ásia ou na Europa. Entra aquele que tiver bom desempenho. Quem não passar precisa estudar mais, se preparar melhor para a labuta.

Se no Brasil enfrentamos sérios problemas com o sistema formador de médicos, a situação não deve ser melhor em outros países. Se aqui temos dificuldades de enquadrar essas escolas e exigir mais dos egressos das salas de aula, em outros lugares ações desse tipo são impossíveis. Mas, além da importação pura e simples de profissionais, questionamos também outros pontos sobre os quais os autores da ideia não tecem comentários.

Esses médicos “importados” terão condições de trabalho reais e imediatas (infraestrutura, insumos, apoio de equipes multidisciplinares)? O paciente por eles tratado terá garantido acesso facilitado a exames e leito de internação? Sem progressão funcional, com vínculos empregatícios precários e distantes dos centros de formação continuada, eles realmente se fixarão nas zonas de baixa cobertura assistencial? Quem garante que ficarão no Interior para sempre?

O dilema por eles encontrado será o mesmo dos médicos formados no Brasil: podem até aceitar o desafio, mas, diante da falta de estrutura e perspectivas, buscarão abrigo nas grandes cidades, acirrando o cenário de desigualdade na distribuição dos profissionais. Os estudos mostram que contamos com médicos em quantidade suficiente para atender nossas necessidades, mas, por conta da falta de políticas públicas, eles evitam as áreas mais pobres e o serviço público.

O governo precisa entender sua responsabilidade de dotar o Estado de medidas estruturantes, sem apelar para o caminho do imediatismo midiático. A criação de uma carreira pública específica no âmbito do SUS é a saída real para o país. Afinal, o que o Brasil precisa não é da interiorização do médico, mas sim da assistência à saúde. Ou seja, garantir a presença de profissionais, de infraestrutura e de uma rede integrada, levando reais benefícios para a sociedade.

*PRESIDENTE DO CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA (CFM)