quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

NO FRONT

ZERO HORA 27 de fevereiro de 2013 | N° 17356

TRAGÉDIA DE SANTA MARIA

A LUTA PELA VIDA


Habituado aos rompantes das emergências, Carlos Fernando Drumond Dornelles, 34 anos, precisou de apenas sete minutos, a partir de um telefonema às 3h43min, para deixar a cama e chegar à boate Kiss. Naquela madrugada de folga, o uniforme do socorrista do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) estava, como de costume, ao lado da cama.

– Não vi muitas pessoas feridas – comentou o taxista no trajeto de quatro quadras.

Médico formado pela Ulbra com passagem pelo Exército, Dornelles comprovou com o que via as palavras do colega Pedro Copetti ouvidas pouco antes: tragédia, desastre, feridos, terrível. De estetoscópio na mão, penetrou o caos que orbitava a porta da casa noturna expelindo fumaça, uma desordem de sirenes, bombeiros e sobreviventes, aos tropeços, carregando mortos e queimados.

– Muitos caminhavam como se fossem zumbis, manchados, com falta de ar – lembra o socorrista.

Logo avistou os companheiros de Samu. Com a experiência de uma missão de seis meses no Haiti, após o terremoto de 2010, o sepeense começava, perto das 4h de 27 de janeiro, o mais penoso de seus dias de trabalho. A jornada de um dos personagens centrais do salvamento, responsável por uma intrincada e eficiente logística de transporte aéreo e terrestre, se estenderia pelas 25 horas seguintes.

– Penso toda hora no que aconteceu. Vai fazer parte de mim para sempre.

Mentalmente, ele organizou o vaivém das ambulâncias

Dornelles auxiliou Copetti a entubar um jovem com insuficiência respiratória grave. Voluntários depositavam mortos e desacordados às portas da ambulância, num vaivém desesperado que não aceitava negativas.

– Jogaram duas meninas em óbito. Pedimos para que as retirassem, para botar gente que estava viva, mas eles não admitiam – conta.

Veículos civis paravam para oferecer ajuda. Em um táxi, foram colocados um ferido no assento do carona, dois no banco de trás e um no porta-malas. Solicitado a todo momento, Dornelles tomou a primeira decisão fundamental para o sucesso do esquema que ajudou a coordenar e que permitiria, até a noite, encaminhar 38 feridos, por via aérea e terrestre, a 10 hospitais do Estado. Delimitou uma zona de triagem e convocou policiais para afastar curiosos.

– Gostaria que todos se afastassem, vocês estão atrapalhando o atendimento – anunciou ao microfone de uma viatura policial.

Dornelles organizou mentalmente o fluxo de viagens das 10 ambulâncias que atendiam o local. Despachava para o Hospital de Caridade, a dois minutos dali, os casos mais graves. Do outro lado da Rua dos Andradas, começaram a ser dispostos os cadáveres. Eram 19, por volta das 4h30min. Policiais militares tentavam deter os mais exaltados, que insistiam em voltar ao interior da boate.

– Está saindo só gente morta e está entrando gente para morrer. Vamos tomar uma atitude – disse Dornelles para o enfermeiro Fabiano Miranda.

Às 5h45min, com capacete e máscara, Dornelles entrou na Kiss para atestar que não havia mais o que pudesse ser feito. Sob o calor que se assemelhava ao de um “dia de verão bem quente”, identificou uma ex-colega de trabalho com o facho da lanterna. Viu corpos paralisados na última tentativa de sobrevivência: um rosto enfiado no vaso sanitário, braços para dentro de um freezer. Na saída, encontrou o prefeito Cezar Schirmer (PMDB) e o deputado estadual Jorge Pozzobom (PSDB). Alguém lhe estendeu um celular.

– Qual é a situação? – perguntou um assessor, em nome do governador Tarso Genro.

– Não tem como precisar. Mandem o máximo possível de aparato aéreo e equipamentos de ventilação mecânica – respondeu Dornelles.

Capitão médico do Exército, Claudio Guimarães Azevedo foi abordado por um colega ao chegar ao Caridade, convulsionado pelo desespero de jovens em roupas de festa e familiares.

– Eu não acho minha filha, já procurei por tudo. Me ajuda a procurar a minha filha.

Azevedo se dispôs a auxiliar o médico em prantos, mas logo foi sugado pelo tumulto. Percebeu que deveria recorrer às lições de medicina de catástrofe, que jamais pensara que seriam úteis em um país sem guerras. Convocou profissionais para uma primeira reunião, às 7h15min. Distribuiu tarefas e rádios portáteis. A Dornelles, delegou a responsabilidade pela remoção de feridos:

– Você vai sentar naquela mesa ali. Não levanta dali.

Vagas de UTI foram improvisadas. Especialistas percorreram os corredores para uma primeira avaliação, classificando os doentes pela prioridade de transferência. Secretarias de Saúde de municípios do Interior congestionavam as linhas telefônicas oferecendo serviços. Às 7h35min, Dornelles contatou a Central de Leitos do Estado, passando a esboçar, manualmente, o complexo esquema que teria de gerenciar. Acionou conhecidos na tentativa de eliminar a burocracia.

– Preciso de aeronaves – comunicou a um tenente-coronel da Base Aérea de Santa Maria, às 7h45min.

– Quantos pacientes? Três, quatro? – questionou o interlocutor.

– No mínimo 50.

Ao longo do dia, quatro helicópteros Black Hawk e três aviões decolaram de dois pontos da cidade, orientados pelo primeiro-tenente aviador Yuri Carneiro de Souza, chefe da equipe de resgate do Esquadrão Pantera.

Os primeiros membros da Força Nacional do Sistema Único de Saúde (SUS), acionada em calamidades, chegaram no início da tarde. Com a sincronia das esferas municipal, estadual e nacional, somada à profunda comoção, o atendimento ficou mais ágil. Formalizou-se a centralização das operações no Caridade, com o Gabinete de Crise. Na opinião de Neio Lúcio Pereira, diretor técnico do Grupo Hospitalar Conceição, a organização das equipes locais foi determinante para o sucesso da operação.

– Todo mundo ficou abismado com o atendimento. Foi uma mobilização total. Se eu tivesse de dizer um nome chave, seria o do Dornelles. Ele só foi dormir porque o empurramos – avalia Pereira.

Naquela semana, dormiu de duas a três horas por noite

Dornelles estima ter realizado cem ligações do próprio celular no domingo. Entre chamadas recebidas e não atendidas, conta cerca de 300. Quando voltou para casa, às 5h15min de segunda-feira, estava afônico.

Naquela semana, Dorneles continuou coor­denando as transferências, dormindo duas ou três horas por noite. Perdeu cinco quilos. Acompanhou a última remoção, no dia 11. Em estado grave, Delvani Rosso, 20 anos, balbuciou “muito obrigado” inúmeras vezes no percurso até o aeroporto. Com queimaduras em 50% do corpo, o estudante disse lembrar do incêndio.

– Quem te salvou? – perguntou Dornelles.

– A ambulância – gesticulou Delvani com os lábios, inaudível, o respirador ligado à traqueia.

– Ambulância de quem?

– Do Samu.

Surpreso, o médico afastou a máscara e pediu que o paciente memorizasse suas feições e o visitasse após a alta. Dornelles acredita que Delvani seja o primeiro rapaz que entubou ao chegar à Kiss. Ao retornar à base, enviou um torpedo a um dos profissionais que recepcionaria Delvani na Capital: “Cuida bem desse menino. Ele nos deixou muito emocionados”. Quinze dias depois da tragédia, o socorrista chorou pela primeira vez.

Ontem, 22 dos 145 pacientes admitidos em 27 de janeiro permaneciam internados em Porto Alegre e Santa Maria. Delvani, ainda na UTI do Hospital de Pronto Socorro, mas já respirando sozinho, levantou e deu três passos.

LARISSA ROSO

2 comentários:

  1. PARABÉNS! A todos os médicos, enfermeiros, atendentes que lá estiveram.

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  2. Você tem um blog com muita qualidade que fala da realidade social a nível de saúde deste belo país.
    O desrespeito à Constituição é muito usual e uniforme para a classe política neste Brasil, lembrando essencialmente aquilo que se passou e trabalhou na Assembleia Legislativa e no Senado neste último dois meses.Por esta razão, eu não diria Direito constitucional, mas sim, Direito social.
    Continuação de um excelente trabalho!
    Zé Bastos

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