segunda-feira, 10 de março de 2014

REMÉDIOS DE PONTA SÃO PARA POUCOS



ZERO HORA 09 de março de 2014 | N° 17727


LARISSA ROSO


COMBATE AO CÂNCER


Pesquisas clínicas permitem o acesso de pacientes aos mais avançados experimentos da ciência. No Brasil, o desenvolvimento e a aprovação de novas drogas contra o câncer, doença que deve se tornar epidêmica em até 15 anos, esbarram em obstáculos como burocracia e falta de investimentos. O sinal verde das autoridades para o início de um novo estudo leva até quatro vezes mais tempo do que nos EUA e na França.

Seguidor de uma rotina regrada, livre de maus hábitos ou excessos, Afonso Celso Haas se confrontou com o veredicto de câncer de pulmão em estágio avançado há dois anos. Abatido por perspectivas desalentadoras, submeteu-se a uma quimioterapia convencional pouco antes de ter a oportunidade de se voluntariar para o teste de um novo medicamento. A cada duas semanas, o comerciante de Ijuí comparece à Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), uma das mais de 20 instituições participantes de uma pesquisa internacional, para a aplicação de nivolumabe, um dos remédios mais avançados da oncologia atual. Ainda em fase de avaliação, a droga não é comercializada em lugar algum do mundo, mas permite que alguns pacientes desfrutem de excelentes resultados e contribuam com o avanço da ciência.

– Sou um privilegiado. Isso me dá força e vontade de viver. Levo uma vida normal – comemora Haas.

Hoje o quadro está estabilizado, e o comerciante, aos 58 anos, investe o fôlego vigoroso da sobrevida no trabalho, na família e na mobilização por mudanças no cenário pouco produtivo da pesquisa clínica no país. A partir de uma iniciativa dele, o Senado promoverá audiência pública no dia 18 para discutir os processos regulatórios que engessam o setor. Para que mais pacientes tenham acesso a tratamentos de ponta, é preciso multiplicar o número de estudos – na última semana, o Brasil aparecia em apenas 2,3% dos 162 mil projetos cadastrados no site www.clinicaltrials.gov, banco de dados do governo americano que disponibiliza informações globais. Com 46,4%, os Estados Unidos lideram o ranking.

Um dos principais entraves é a morosidade dos trâmites burocráticos. Enquanto um projeto é avaliado pelas autoridades americanas, britânicas e francesas em três a quatro meses, no Brasil o prazo médio salta para 10 a 14 meses, para que só então, no caso de aprovação, a convocação de participantes possa começar. Como muitas vezes as pesquisas congregam entidades de diversos países, o Brasil é privado da chance de embarcar em iniciativas importantes. Quando está, finalmente, autorizado a prosseguir, os parceiros estrangeiros já avançaram muito. De acordo com a Interfarma – Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa, o Brasil perdeu, nos dois últimos anos, 64 estudos, 23 deles relacionados a patologias com risco de morte, como o câncer. Estima-se que mais de 3 mil pessoas deixaram de ser favorecidas.

– Quanto mais dificuldades se impõem, menos estudos vêm para cá, menos pacientes têm acesso à medicação, menos instituições têm oportunidade de se qualificar, menos investigadores têm acesso à tecnologia. O nosso potencial é muito maior do que estamos mostrando agora – avalia Gustavo Werutsky, oncologista do Hospital São Lucas e diretor científico do Grupo Latino-Americano de Pesquisa em Câncer.

Segunda causa de morte no mundo, atrás somente dos problemas cardiovasculares, o câncer deve atingir o status de epidemia em um período de 10 a 15 anos, estabelecendo-se na primeira colocação. Enquanto nações desenvolvidas exibem um melhor desempenho no combate à enfermidade, colhendo benefícios dos incentivos à pesquisa e de sistemas de saúde melhor estruturados, os países em desenvolvimento podem se tornar responsáveis por dois terços dos óbitos de origem cancerígena.

Inovação chega por último ao SUS


Uma pesquisa clínica com medicamentos surge para verificar a eficiência de uma droga nova em comparação a outra já existente. Pode abranger milhares de voluntários, selecionados com base em características do quadro clínico (nem todos os candidatos são elegíveis para as vagas), e se estender por até 10 anos. Ao final da investigação, caso o remédio A se prove superior ao B, encaminha-se um pedido de registro aos órgãos competentes, que avaliam a eficácia e a segurança do produto. O primeiro lugar a liberar a comercialização costuma ser os Estados Unidos, por meio da Food and Drug Administration (FDA).

No Brasil, a encarregada é a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Se há demora ou o registro é negado, pacientes com recursos recorrem ao Exterior, o que pode significar um investimento de milhares de dólares por mês. Quando a droga é aprovada, fica acessível primeiro aos clientes da rede privada e dos planos de saúde, quando há cobertura para tal. O Sistema Único de Saúde (SUS) é o último destino – enquanto não podem receber os remédios mais avançados, muitos usuários da rede pública os requisitam por via judicial. Celeridade nas deliberações e mais clareza para os critérios que determinam a aprovação e a recusa de registros são duas reivindicações frequentes entre a classe médica.

– O melhor que se tem no mundo não está disponível pelo SUS – constata Carlos Barrios, diretor do Instituto do Câncer do Hospital Mãe de Deus. – Quem participa da pesquisa clínica vai ter acesso ao melhor tratamento possível. Quanto mais estudos tivermos, mais pessoas serão beneficiadas. Os avanços tecnológicos entram nos países desenvolvidos rapidamente e demoram a estar disponíveis nos países em desenvolvimento. Pessoas morrem por causa disso – acrescenta.

Gilberto Schwartsmann, chefe do Serviço de Oncologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, considera que atrasos e pouca eficiência estão entre “nossas dores do subdesenvolvimento”, mas enxerga progressos em duas décadas:

– É a estrutura de saúde de um país de terceiro mundo: tem burocracia, tem qualidades, tem defeitos. Está muito longe de ser o que a gente gostaria, mas já melhorou muito.

Ana Krepsky, 39 anos, usa gratuitamente o crizotinib, droga não autorizada pela Anvisa. Diagnosticada com câncer de pulmão há três anos, a cardiologista segue tomando os comprimidos mesmo após a conclusão do estudo do qual fez parte porque continua se beneficiando da terapia. A alternativa seria a importação, com custo estimado em R$ 8 mil a R$ 10 mil mensais. O laboratório fabricante deve ingressar com outro pedido de avaliação na agência governamental.

– A gente não tem muita coisa a perder. Os efeitos colaterais são mínimos. É a única maneira de conseguir o remédio que está me mantendo aqui, superbem – diz Ana.



Ser “cobaia” é uma bênção


Há precisamente um ano, em um 9 de março como hoje, os médicos da Santa Casa extirparam meu rim esquerdo, tomado que estava por um tumor maligno. Dias depois, saía do hospital sem o rim, mas repleto de ilusões. Como estava enganado a respeito de tudo, como era ignorante acerca do que acontecera e aconteceria comigo.

Minha maior decepção foi descobrir que, a despeito de todo o desenvolvimento da medicina moderna, não existe controle absoluto sobre o câncer. Alguns podem se curar, alguns podem morrer em semanas, alguns podem conviver pacificamente por anos com a doença, alguns podem sofrer muito por sua causa. É impossível saber ao certo.

Mas os médicos lutam. Isso testemunhei. Os médicos lutam. Há cientistas que consomem dois terços de suas vidas estudando uma única molécula que, um dia, depois de 20 ou 30 anos de pesquisas, resultará em uma droga que proporcionará mais conforto aos pacientes. São heróis. São homens que salvam vidas.

Essas pesquisas são criteriosas e se dão, quase todas, no eixo Europa Ocidental-Estados Unidos. Depois de algumas fases, quando os remédios finalmente são testados em seres humanos, é porque estão em fase adiantadíssima, prestes à aprovação. Ser, digamos, “cobaia” de uma dessas pesquisas é uma bênção, porque o paciente terá acesso ao que há de mais avançado na ciência e será tratado mediante um protocolo empregado nos centros mais modernos do mundo. O desempregado que mora nos confins de Alvorada e que leva duas horas de ônibus para chegar a um hospital de Porto Alegre será tratado com o mesmo desvelo que o empresário japonês multimilionário que está pagando em dólares por um tratamento nos Estados Unidos.

Por isso, me inscrevi num desses protocolos, que estava em desenvolvimento no Hospital de Caridade de Ijuí. Consistia numa comparação: uma droga novíssima versus outra já disponível no mercado. Havia 50% de chances de eu pegar a droga nova, dependia de uma espécie de sorteio, uma randomização feita por computador. Era uma ou outra. E eu peguei... a outra. A droga mais antiga. Quer dizer, “perdi”. Mesmo assim, continuei no protocolo, usei a droga à disposição (que, aliás, é caríssima) e, por um tempo, deu certo. Participar daquela pesquisa foi muito bom para mim. Agora, pretendo participar de outra. E, aí, quem sabe, tenho mais sorte. Quem sabe me torno uma feliz cobaia desses paladinos da ciência.

DAVID COIMBRA

CONTRAPONTOS

O que diz a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) - Sobre o tempo médio para aprovação de um novo medicamento, a agência informou que “cada processo tem características específicas, que alteram o tempo de análise”. “O tempo pode ser influenciado por fatores como exigência de novos dados ou estudo, tempo de resposta da empresa e as próprias indicações e perfil de risco do produto. Outro fator importante é a priorização em casos como medicamentos de interesse do SUS, para mercados em que não há genéricos. Consultoria externa indicou que até 40% do tempo de análise pode estar associado a questões de responsabilidade da empresa que solicitou o registro”, diz o texto. A Anvisa destacou que precisa “assegurar a eficácia e segurança do medicamento”, o que demanda “uma série de requisitos e estudos”.

O que diz a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) - O órgão não respondeu aos pedidos de entrevista.



Um comentário:

  1. AUDIÊNCIA PÚBLICA DEBATEU DEMORA NA LIBERAÇÃO DE PESQUISA CLÍNICA , Por Greyce Lousana*

    Em Audiência Pública realizada dia 28/4 pelo Fórum Permanente dos Membros de Comitês de Ética e Profissionais em Pesquisa do Município de São Paulo foi amplamente discutida a demora na liberação de pesquisas clínicas no Brasil. Os membros do Comitê devem encaminhar um ofício ao Senado Federal e à Comissão de Ética em Pesquisa com uma revisão da resolução 466/12 que regulamenta pesquisas em seres humanos. Para o Vereador Paulo Frange, que abraça a causa e conduziu os trabalhos, é muito importante a criação de um marco regulatório para o setor, que já está sendo discutido em Brasília.

    A SBPPC - Sociedade Brasileira de Profissionais em Pesquisa Clínica - entidade que tem participado ativamente e apoiado mobilizações como esta, espera que as autoridades competentes se sensibilizem e atendam aos apelos frenéticos de quem depende das pesquisas para viver. É preciso parar com o jogo de empurra que só aumenta a burocracia e a morosidade. Nossa grande expectativa é fazer com que as pessoas que têm competência para legislar e promover Normas entendam que o processo de condução de pesquisas é muito abrangente e interministerial. Conduzir pesquisa significa desenvolver novos medicamentos, vacinas, cosméticos, alimentos, próteses e também pesquisas nas áreas de ciências sociais, humanas etc. Então, esperamos que as autoridades presentes saiam daqui sensíveis ao problema e entendam que estamos bastante preocupados com esse "imbroglio" administrativo.

    O Brasil está engessado para pesquisas, perdendo competitividade, divisas, pacientes vítimas de inúmeras doenças, principalmente o câncer e oportunidades de registros de patentes nacionais. É uma bola de neve. As dificuldades só aumentam e os incentivos governamentais só diminuem. Menos treinamento diminuem as chances de qualificações de outras instituições brasileiras. O país conduz pesquisas com seres humanos há bastante tempo, mas ainda tem uma série de gargalos que fazem com que o país hoje perca uma série de projetos; as universidades, às vezes, deixam de cumprir algumas regras que não foram pensadas para certos estudos acadêmicos; perdemos empregos, pois a indústria farmacêutica não quer se instalar no Brasil; perdemos pesquisas em que há a intenção de incluir pacientes brasileiros; perdem os pesquisadores que não conseguem trazer tecnologia inovadora, mas principalmente perde o paciente que fica sem a opção de um tratamento de ponta.

    Nesse sentido nos cabem algumas reflexões importantes: a população brasileira corre risco de saúde, já que são feitas pesquisas sem referências do biotipo dos brasileiros para a produção de medicamentos e tratamentos? Qual o reflexo disso nas próximas gerações?
    *Dra. Greyce Lousana é Presidente Executiva da SBPPC e diretora da INVITARE Pesquisa Clínica.

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