“A diferença entre o remédio e o veneno está na dose.” A frase do médico suíço Paracelso, do século 16, ainda hoje visível na decoração de consultórios médicos, é bastante útil para medir a saúde financeira dos municípios que atualmente se veem às voltas com uma prática que ameaça corroer a capacidade investidora das cidades brasileiras: as crescentes demandas judiciais por medicamentos caros que deveriam ser fornecidos pelo Estado ou pela União, mas acabam saindo dos cofres das prefeituras.
O financiamento da saúde pública é uma preocupação nacional desde os albores da redemocratização, na década de 80. A Constituição de 1988 estabeleceu o compartilhamento da gestão de saúde entre municípios, Estados e União, contingenciando, por exemplo, 15% dos orçamentos municipais para a área, e uma fatia de 12% dos estaduais. A parcela da União jamais foi definida, apesar da boa tentativa da Emenda Complementar 29, ainda pendente de regulamentação.
Os municípios se esforçaram e hoje, em sua ampla maioria, investem mais que os 15% obrigatórios. No caso dos Estados, todavia, nenhum aplica toda a sua cota, no que são tolerados pelos Tribunais de Contas, sempre tão implacáveis com as prefeituras.
Pelas normas do SUS, cabe às prefeituras a obrigatoriedade de manter em seus postos de saúde uma lista de cerca de 80 medicamentos da chamada Farmácia Básica, devendo os Estados arcar com os demais. Apesar disso, milhares de decisões judiciais, ignorando estas normas, simplesmente determinam ao município que providencie, em 48 horas, medicamentos caros que competem a outras esferas de governo.
Não se descrê de que os magistrados pensem estar fazendo justiça social. No entanto, o fluxo crescente de tais ações, movidas muitas vezes por pessoas que detêm os recursos para pagar esses medicamentos, acaba por inverter a lógica da saúde pública, que deveria ser universal, mas pressiona o caixa das prefeituras em favor de uma minoria.
No caso de São Gabriel, cidade que administro, a despesa com remédios demandados por via judicial saltou de R$ 200 mil em 2003 para R$ 1,7 milhão no ano passado, numa evolução de quase 1.000%, totalizando R$ 7 milhões em oito anos. A despesa de 2010 corresponde a uma folha de pagamento, valor que daria para construir 40 apartamentos populares, ou custear mais 500 alunos na rede municipal de ensino. Isto sem falar nas despesas normais da saúde básica e o socorro financeiro aos hospitais filantrópicos, feito por muitas prefeituras, e que no caso de São Gabriel representa R$ 2 milhões por ano. O mais grave é que o montante gasto para medicamentos demandados judicialmente beneficia um público que nos últimos dois anos foi de 427 pessoas, em detrimento da saúde básica de 60 mil habitantes.
Além disso, vários juristas opinam que não é exatamente tarefa do Judiciário deliberar sobre aquisições que, por alocação de recursos e prioridades, são da alçada do Poder Executivo. Além do aspecto financeiro, há um conflito de competências.
O remédio judicial, pelo excesso da dose que vem sendo aplicada nos últimos anos, pode levar muitas prefeituras à falência múltipla de órgãos nos próximos 10 anos. A sociedade precisa discutir esta questão, sob pena de muitos municípios não poderem, futuramente, atender à saúde básica de todos em detrimento do privilégio de alguns poucos. Faria bem a nossos juízes pensar no conselho do médico Paracelso.
ROSSANO DOTTO GONÇALVES, PREFEITO DE SÃO GABRIEL - ZERO HORA 02/04/2011
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