domingo, 22 de setembro de 2013

MÉDICOS NO FRONT DA SAÚDE

ZERO HORA 22 de setembro de 2013 | N° 17561

ITAMAR MELO. Colaborou Julia Otero

NO FRONT DA SAÚDE. Com a palavra, os médicos do SUS


A iniciativa do governo federal de trazer médicos do Exterior para assumir vagas na rede pública de saúde deixou os profissionais brasileiros em uma situação delicada. Ao criticarem a medida, eles acabaram por se indispor com amplos setores da população, favoráveis ao programa.

– O governo colocou a sociedade contra o médico. Ele foi apresentado como um elitista que não quer trabalhar com pobre – afirma José Camargo, chefe do setor de transplantes da Santa Casa.

Nesta reportagem, Zero Hora dá voz a cinco profissionais que atuam ou atuaram na rede pública, em diferentes municípios gaúchos, para que eles relatem as dificuldades de ser médico do SUS. Os depoimentos ilustram a posição de profissionais como Camargo, para quem o médico virou bode expiatório de precariedades que não são dele, mas do próprio sistema, que carece de financiamento, gestão e estrutura adequada.

– O problema do SUS é muito mais complexo do que colocar médico onde não tem. Por que será que ninguém quer trabalhar lá? Porque não tem preço que pague conviver com a morte evitável – diz ele.


“O profissional representa a prefeitura, o Estado, a União”

“Atuo há 15 anos na Lomba do Pinheiro, em um posto que tem goteiras na sala dos pacientes. Enfrentamos falta de enfermeiros e técnicos, a ponto de salas que deveriam estar abertas e à disposição da população o tempo todo funcionarem em rodízio. O paciente chega com um dedo cortado, precisa de curativo e encontra a sala fechada. É coisa simples, mínima para uma unidade de saúde oferecer, mas ele vai ter de procurar outro posto de saúde.

A dificuldade é resolver a situação de quem precisa de atendimento especializado. Tenho um paciente taxista que está perdendo a visão. Ele tem de fazer exame de campimetria para diagnosticar a doença e definir o tratamento. Encaminhei-o ao oftalmologista como prioridade, e conseguimos a consulta. Mas, quando chegou lá, ele esbarrou no exame, marcado para um ano depois. Fiquei sabendo porque ele voltou à unidade de saúde com a visão mais deteriorada, para pedir encaminhamento a outro oftalmologista. Esse taxista não está trabalhando e corre o risco de ficar cego.

Outro caso que acompanhei é o de um rapaz de 23 anos com uma situação séria de epilepsia, com convulsões frequentes, que o deixam machucado. Encaminhei-o a um neurologista. O eletroencefalograma que ele precisa fazer leva um ano para sair.

A gente vê a saúde desses pacientes se deteriorar enquanto esperam exames que não são coisa de outro mundo, mas aos quais não temos acesso. Só quem tem o controle sobre o exame é o gestor (o administrador da saúde local).

Outra questão é a falta de remédios na farmácia da unidade. Tem vezes que faltam coisas básicas, como paracetamol. O paciente precisa fazer uma via-crúcis por unidades até achar o remédio. São pessoas que têm dificuldade para pagar a passagem.

Para o usuário, o profissional da unidade de saúde representa a prefeitura, o Estado, a União. Se o paciente precisa de neurologista ou cardiologista, ele vê a unidade básica como o local que tem de suprir essa necessidade. Isso gera conflitos, porque há pacientes que consideram o médico o culpado por problemas do sistema. Já houve pacientes alterados, tapa na cara de enfermeiro, ameaças. Esse estresse provoca um grau elevado de adoecimento entre profissionais. Muitos têm de tomar medicação.

Essas situações fazem o médico se sentir impotente e frustrado. A distância entre aquilo que tu podes fazer e o que tu consegues fazer é enorme. Há profissionais que realizaram uma formação de dois ou três anos em saúde da família mas desistem. Continuo porque, bem ou mal, criei vínculo com a comunidade e consigo influir na vida das pessoas.”


“Via as pessoas com dor e não tinha o que fazer”

“Fiz concurso como urologista para um hospital da Região Metropolitana, fui efetivado e ganhava um salário razoável. Logo que entrei, disse que precisava de material, senão era um contrassenso estar lá. Solicitaram que eu entregasse uma relação do que queria. Passei um final de semana fazendo isso, com todas as especificações, para não ter erro numa licitação. Tudo que pedi custaria hoje cerca de R$ 200 mil. Podiam comprar partes. Nos três anos em que fiquei no hospital, não foi comprado nada.

Isso tinha impacto direto no meu trabalho. Não conseguia realizar os procedimentos. Se aparece um paciente com cálculo no ureter, tenho de desobstruir. É uma urgência. Para isso, preciso de aparelhos endoscópicos. Não se pode fazer uma cirurgia aberta, com corte. Se fizer isso, posso até ser acionado judicialmente pelo paciente. Nesses casos, eu via os pacientes passando por problemas, com dor, dificuldade, desconforto, e não tinha o que fazer. Só podia insistir: preciso de material, preciso de material.

O paciente internava com sangramento na urina. Constatava-se uma área suspeita de ter um tumor na bexiga. O procedimento é entrar na uretra com aparelhos e retirar o tumor. Resolve o sangramento e vai dar um diagnóstico do que está acontecendo. Isso eu via quase todos os dias. E não tinha como resolver.

Só resolvia casos simples e me sentia inútil. Uma das coisas mais frustrantes é saber o que se deve fazer, ter qualificação técnica para isso, ver o problema e não poder agir porque alguém não comprou material.

Recentemente, mudou a administração, e o novo administrador disse que eu tinha de mudar a postura e resolver os problemas. Respondi: ‘Se o senhor me der condições técnicas, vou resolver’. Ele não queria que eu pedisse para a direção comprar coisas. Como punição, fui retirado da minha função, teria de fazer cirurgia geral. Resolvi me demitir há pouco mais de um mês. Faltavam dois, três meses para eu ter estabilidade. Tinham nos informado de um projeto que iria para a Câmara e dobraria nosso salário, que já era razoável. Se eu tivesse um pensamento pequeno, podia muito bem passar para a cirurgia, atender três meses e ter minha estabilidade. Mas não concordo com isso.

Essas situações acabam afastando profissionais qualificados, frustrados porque não conseguem resolver o problema do paciente devido à má gestão. Chega uma hora que tu dizes: ‘Esse dinheiro eu não mereço ganhar’. Hoje atendo quase só clínica privada, que ocupa 90% do meu tempo, e decidi nunca mais fazer concurso público.”



“Tem vezes que digo para ele ir a um lugar com recursos”


“Trabalho há 18 anos no pronto atendimento de Eldorado do Sul. Grande parte de minha rotina é ficar ao telefone tentando internar paciente em outro município. Às vezes perco três, quatro horas para conseguir uma vaga. Médico custa caro, mas tenho de parar tudo e fazer só isso. Deixo de atender outras pessoas.

É preciso encaminhar para outras cidades porque há muitos casos em que não temos condições de tratar aqui. Em várias situações, o paciente corre risco de vida, mas a gente não consegue transferir. O retardo em oferecer o tratamento resulta em morbidade. A isquemia cerebral é um exemplo. Se o atendimento é feito em tempo hábil, desobstrui-se a artéria, tira-se o coágulo, a circulação do cérebro normaliza, e a pessoa volta a ter vida normal. Se isso não acontece, a chance de sequelas que duram para a vida toda é maior. Se recebemos um paciente desses e não conseguimos encaminhar, ele pode ficar com um lado todo do corpo paralisado para sempre. Isso a gente vê direto.

Tem vezes que eu olho o paciente e digo para ele ir direto a um lugar com mais recursos, porque sei que, se eu aceitá-lo no pronto atendimento, depois não consigo a transferência, e ele vai sair prejudicado. Se ele for direto, não podem recusá-lo.

Outras vezes, quando não consigo a transferência e vejo que a coisa está encrespando, bate o desespero. Boto o paciente na ambulância e vou embora. Tu vês que aqui não tem como salvar o paciente, mas de repente se ele entrar na emergência de um hospital-escola, pode haver uma chance. Quando tu chegas lá no hospital, és xingado pelo médico do plantão. Teve caso em que o jurídico de um hospital de Porto Alegre botou processo contra um médico daqui, porque ele foi sem contato. É melhor levar um processo porque fui sem contato do que deixar o paciente aqui e levar processo porque a família diz que não fiz nada.

É uma angústia e um estresse enormes, tanto para o profissional quanto para a família e o paciente. Familiares não conseguem entender a situação e começam a pressionar o médico, a ameaçar o médico. Acham que o não atendimento é culpa do profissional.

Tem alguns que tentam agredir. Ameaça a gente escuta direto. Tens de colocar na fila de espera e era isso. Legalmente, tu registras a situação e estás respaldado. Nenhuma instituição vai te cobrar coisas que tu não tens como fazer. Mas, emocionalmente e fisicamente, tu continuas à mercê. E quando a família começa a te ameaçar e a te xingar, não existe mais relação médico-paciente. Isso leva profissionais a desistirem. Continuo porque sou burra.”



“É frustrante ver um paciente que poderia sobreviver”

“Me formei há um ano e meio e fui trabalhar em uma prefeitura do interior de Goiás. O salário era de R$ 20 mil. Descobri que o prefeito queria me usar como arma política para ganhar a eleição. Decidi não ficar, porque não se pode usar a medicina para fazer política. Fui embora depois de uma semana. Vim trabalhar em Cachoeira do Sul, no pronto atendimento. Era um médico só por plantão 24 horas. Na média, passavam 140 pacientes por plantão. Tinha essa demanda enorme, mas colocavam um médico só para atender. Não pensavam que é preciso realizar uma anamnese, um exame físico. Eu tinha de dar preferência para as urgências.

Como as pessoas esperavam horas para ser atendidas, ficavam irritadas e havia confusão. Era comum o paciente se voltar contra o médico. Várias vezes tive problemas, com ameaças. Uma vez um paciente invadiu a cozinha, quando eu estava no almoço, para botar a boca em mim e dizer que eu devia estar atendendo.

Eu me sentia frustrado, porque meu trabalho não tinha retorno. Depois de nove meses, não aguentei mais a sobrecarga e o ambiente inadequado para médico e pacientes. Senti que não estava sendo útil por falta de condições mínimas de trabalho. Daí eu saí.

Em outubro, comecei a trabalhar como plantonista no pronto atendimento 24 horas de Arambaré e no Hospital Nossa Senhora do Carmo, de Tapes. As condições são melhores, mas temos dificuldade quando o paciente é grave e precisa de UTI. Muitas vezes a gente não consegue transferi-lo, porque depende de vaga.

Há pessoas que morrem antes de conseguir a transferência. Teve uma paciente que chegou em trabalho de parto. O bebê nasceu prematuro e precisava de UTI neonatal. Levou três horas para conseguir a vaga. Quando a criança chegou a Porto Alegre, morreu. Talvez pudesse ter sido salva, se as condições fossem outras.

Tem situações em que não se consegue a vaga, e o paciente fica aqui, com risco de vida. É muito comum tu fazeres um plantão e teres um paciente que está aguardando uma cirurgia simples, como retirar uma vesícula que está provocando dor. E, na semana seguinte, no novo plantão, ver que o paciente está lá de novo, com dor, sendo medicado, porque não conseguiu a cirurgia. É frustrante tu veres um paciente que poderia sobreviver e não sobrevive por problemas desse tipo. O que me leva a trabalhar no sistema é que me formei para isso. Tenho de atender pessoas, por mais que seja difícil. A gente acaba ajudando um ou outro. A medicina é assim. Apesar de todas as dificuldades, no final do dia durmo tranquilo, porque de alguma forma estou ajudando.




“Às vezes, tem de escolher quem vai morrer”

“Trabalho no SUS em Pinheiro Machado, Candiota e Pedras Altas. Nossa dificuldade no Interior é a fila do SUS, tanto para exames quanto para especialistas. Tem exames mais sofisticados, como ressonância, endoscopia, colonoscopia, que demoram até dois anos. Por exemplo, se tu tens uma suspeita de tumor, demora muito para fazer, e a doença avança. Isso acaba com as chances de diagnóstico precoce. Esta semana mesmo vi uma paciente de oncologia morrer porque a consulta para o especialista demorou cinco meses e não deu tempo de ela iniciar o tratamento. No Interior, o SUS não preconiza ter grandes especialistas, mas ter cidades-referência para tratamento, que no meu caso são Pelotas ou Bagé. As prefeituras funcionam bem. A pessoa consulta no posto, o médico vê necessidade de ser encaminhado, a secretaria de saúde marca a consulta e agenda a viagem junto. Então as prefeituras passam carregando gente todo dia, várias vezes ao dia.

O problema é que o SUS demora muito. É muita gente para usar a mesma coisa. Há pouco, examinei uma moça. Ela está com nódulo no seio. Daí perguntei a ela: ‘Tu tens plano de saúde?’. E ela: ‘Não’. Daí tu ficas assim, porque até ela conseguir fazer um ultrassom pelo SUS, o problema já pode estar disseminado, sabe? Uma mulher com menos de 40 anos. Aí eu disse para ela: ‘Olha, vou te pedir um ultrassom, tenta fazer o mais rápido possível. Vai na secretaria, tenta marcar. Se demorar muito, tenta conseguir um dinheiro emprestado e fazer um exame particular, conseguir mais barato, sei lá, tenta te virar’. A vontade que tu tens é de conseguir tudo para todo mundo, é muito frustrante.

Quando é emergência, também é difícil. Primeiro porque tu te expões muito: pode dar um acidente, por exemplo, com 10 feridos graves, e só tu de médico. Mas daí tu mandas para uma cidade maior, e o hospital está superlotado. Não tem leito, não tem medicação.

Às vezes, a gente tem de escolher quem é que vai para o leito, quem é que vai morrer, quem vai receber o remédio. Às vezes, acontece de ter pouca medicação, e tu teres de escolher quem vai receber aquela medicação. Ou não ter a medicação: já me chegaram vários casos de pessoas enfartando e eu não tenho remédio.Ficamos eu, o paciente e um raio X. Porque é uma medicação muito cara, tipo R$ 5 mil, então tentamos estabilizar o paciente e encaminhá-lo para centros de referência o mais rápido possível.

E mesmo remédios baratos, às vezes acabam na farmácia do município. Os pacientes vêm cobrar que eu prescrevi medicação que não tem na farmácia, e ele não tem dinheiro para comprar.”

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