domingo, 13 de novembro de 2011

PAÍS DO REMÉDIO CARO



Doente brasileiro paga mais por medicamento - HUMBERTO TREZZI E MARCELO GONZATTO, ZERO HORA 13/11/2011

Custa muito mais viver na Europa do que no Brasil, certo? Depende. Se você for um doente brasileiro, são grandes as chances de que seu tratamento saia bem mais caro do que o de um europeu, usando os mesmos medicamentos.

Quem circula pelo centro de Paris e precisa comprar cloridato de tansulosina, remédio para tratamento de próstata e comercializado com o nome de Secotex, pode adquirir o medicamento por módicos 14,20 euros – cerca de R$ 34. Se a viagem continuar até Lisboa, o custo é ainda menor: 10,78 euros (quase R$ 26). Se atravessar o Atlântico e percorrer 9,7 mil quilômetros até Montevidéu, o baque na carteira será maior, equivalente a R$ 57,80. Diferença substancial, mas nada que se compare ao custo deste remédio nas farmácias do Brasil: R$ 189,86. Ou seja, sete vezes mais caro do que em Portugal.

Zero Hora pesquisou o preço da tansulosina em oito capitais do planeta e constatou que o doente brasileiro precisa sobreviver à doença e, ao mesmo tempo, resistir aos preços de medicamentos, bem maiores do que os praticados em países nos quais o custo de vida é mais alto.

Por que os preços diferem tanto

O cloridato de tansulosina, remédio para tratamento de próstata e comercializado com o nome de Secotex, não é um caso isolado.

Situação semelhante ocorre mesmo com medicamentos mais populares como a sinvastatina, usada para baixar o nível de colesterol, cuja caixa com 30 comprimidos de 40 miligramas custa até R$ 70 em farmácias do Estado. Em Rivera, cidade uruguaia separada por uma rua de Santana do Livramento, o mesmo produto custa o equivalente a R$ 25, conforme constata a porto-alegrense Sandra Corrêa, 59 anos, que costuma viajar ao Uruguai apenas para se abastecer de remédios.

A levotiroxina sódica, destinada ao tratamento de hipotireoidismo, pode ser adquirida pelo equivalente a R$ 8,70 na França, mas nas farmácias brasileiras as mesmas 30 cápsulas saem por cerca de R$ 15 – quase o dobro. As razões para isso envolvem uma fórmula complexa. Confira três motivos:

1 - Impostos abusivos: um dos principais componentes do amargo composto financeiro dos remédios é a pesada carga tributária que incide sobre medicamentos. Levantamento feito em 23 países mostra que o Brasil é o que injeta mais imposto no custo dos remédios: o equivalente a um terço do preço cobrado do consumidor, devido à sobreposição de alíquotas como o Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) e o PIS/Cofins. Isso é mais de cinco vezes acima da média mundial.

2 - Alta margem de lucro: o valor dos produtos vendidos no Brasil é limitado por uma lista de preços máximos ao consumidor definida pela Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (Cmed). Essa listagem tolera um acréscimo de até 38% entre o preço de fábrica e o de varejo – margem destinada ao lucro das farmácias. No Uruguai, por exemplo, esse índice fica em torno de 7%. Além disso, conforme o Instituto Brasileiro de Defesa dos Usuários de Medicamentos (Idum), em vez de forçar uma redução nos preços, o tabelamento acaba mantendo os lucros da indústria farmacêutica em patamar elevado.

3 - Preço ditado pelo fabricante: a maior parte dos medicamentos entrou no mercado brasileiro antes de 2004, quando o controle de preços por parte do governo era menos rígido. Isso faz com que os laboratórios possam manter os valores altos daquela época. Essa herança infla o custo principalmente de remédios cujas fórmulas ainda estão protegidas por patentes, livres da concorrência dos genéricos. A partir de 2004, medicamentos novos devem limitar seu preço ao valor mais baixo praticado em uma lista comparativa de nove países – mas os antigos não precisam seguir essa regra.

Intermediários encarecem valores

A Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa do Brasil (Interfarma) argumenta que o preço médio de todos os medicamentos vendidos em farmácia, incluindo os genéricos, é de R$ 17,50 – o que seria mais barato do que em outros países. Não é bem assim, mostra um estudo de 2006. O levantamento comparou o preço dos 15 medicamentos mais vendidos no mercado brasileiro com os de outros 11 países. Cinco tinham preços de varejo mais baratos que o Brasil – embora o custo de produção nacional, na fábrica, seja o menor da lista.

A contradição ocorre porque, da fabricação ao consumo, muitos intermediários lucram, aí incluídos governo e distribuidores. Quem paga a conta são os pacientes que vivem em um país em desenvolvimento, mas são submetidos a custos de tratamento muitas vezes superiores aos de Primeiro Mundo.


Viagens por remédios mais baratos

Alguns brasileiros têm trocado o turismo por viagens com o exclusivo objetivo de abastecer seu estoque de medicamentos. A via-crucis ocorre em decorrência dos altos preços de remédios de uso contínuo cobrados no Brasil. O Uruguai é um dos destinos beneficiados e se transformou em rota certa para quem procura reduzir o custo de seus tratamentos de saúde.

Pacientes de doenças crônicas, que necessitam usar produtos para o resto da vida, como a moradora de Porto Alegre Sandra Corrêa, 59 anos, são responsáveis pelo florescimento de um roteiro internacional que substitui o interesse turístico pela necessidade econômica e a compra de lembranças pela aquisição de remédios capazes de combater males como depressão, colesterol, transtornos mentais e outros problemas de saúde.

Sandra costuma viajar para o Uruguai três ou quatro vezes por ano a fim de buscar carregamentos de duas substâncias: sertralina, para tratar sintomas de depressão, e sinvastatina, para baixar o nível de colesterol nos vasos sanguíneos. Cada caixa com 30 comprimidos em território uruguaio lhe custa R$ 28, no primeiro caso, e R$ 25, no segundo.

– Aqui no Brasil, o preço é no mínimo o dobro – lamenta Sandra.

Em uma pesquisa feita por Zero Hora em três redes de farmácias, o preço médio da caixa com 30 comprimidos de sinvastatina de 40 mg fica em R$ 71 – embora a oferta de descontos reduza o preço de venda para R$ 39, em média. Sandra aproveita viagens a Santa Vitória do Palmar, próximo ao Chuí, onde faz visitas a familiares, para buscar três caixas dos produtos a cada incursão ao país vizinho.

Gasto menor diminui prejuízo

A discrepância entre valores também chama a atenção do jornalista aposentado Saul Júnior. Nos últimos meses, adquiriu medicamentos durante viagens por Uruguai, Portugal e França.

Um dos produtos comprados em Portugal foi a tansulosina, pelo qual pagou o equivalente a R$ 26 por uma caixa com 30 cápsulas de 0,4 miligrama. No Brasil, o custo vai a R$ 189 pelo mesmo tipo de produto.

– Dizem que os impostos aqui são mais altos, mas só o imposto não explica a grande diferença. Agora, deixo para comprar meus remédios quando vou ao Uruguai – afirma.

Nem todo medicamento no Brasil tem valor médio mais alto do que em outros países – produtos lançados mais recentemente e os genéricos puxam o valor para baixo. Mas os casos de Saul e Sandra mostram que grande parte dos produtos de custo mais alto e tecnologia mais desenvolvida força um périplo dos doentes por outras regiões do planeta.

Participaram desta reportagem Itamar Melo, Marina Lopes, Márcio Brito (Especial) e Nilson Mariano.

Indústria critica governo

Porta-voz da Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa do Brasil (Interfarma), que congrega grandes laboratórios farmacêuticos, Jorge Raimundo sustenta que o preço médio pago pelos brasileiros para comprar remédios não é excessivo. Em entrevista concedida por telefone, o executivo admite a existência de “eventuais discrepâncias”, mas insiste em que o preço dos fármacos no Brasil não se compara com o que é cobrado na Europa ou nos Estados Unidos.

Raimundo reconhece que a carga tributária de 33,9% no Brasil tem contribuído para elevar o preço dos medicamentos, além do preço máximo ao consumidor, que garante às farmácias 38% sobre o preço de fábrica.

– No Uruguai eles têm 10% de impostos (sobre remédios), e a margem da farmácia é muito pequena.

Mesmo assim, o executivo da indústria farmacêutica diz que o preço médio de todos os medicamentos vendidos em farmácia, incluindo os produtos genéricos, é de R$ 17,50, que seria mais baixo do que na maioria dos outros países – embora não apresente levantamento que demonstre isso.

– Aqui, é o governo que dita o preço dos remédios, com base em uma chamada cesta de países, em que o valor cobrado no Brasil tem de ser igual ou menor ao preço mais baixo praticado nesses países – justifica.

Zero Hora colocou em dúvida esta certeza de que o preço médio dos remédios no Brasil é barato. Enviou então à Interfarma uma lista de pelo menos sete medicamentos muito utilizados por brasileiros com doenças crônicas e cujo custo, aqui, é bem maior que na Europa e no Uruguai. Convidada a analisar o porquê, a Interfarma não indicou alguém para responder.

ENTREVISTA - “Temos impostos mais altos” - Pedro Bernardo, chefe do Núcleo de Regulação Econômica da Anvisa.

Chefe do Núcleo de Regulação Econômica da Anvisa, Pedro Bernardo admite que os altos impostos e a falta de uma regulamentação mais antiga contribuem para elevar o preço dos remédios:

Zero Hora – Temos casos de remédios muito mais caros do Brasil do que em outros países da América do Sul ou Europa. Por que isso ocorre?

Pedro Bernardo – Há um fenômeno que ocorreu não só com medicamentos, mas com a maioria dos produtos do Brasil. Se você pensar em um produto qualquer que custava R$ 100 em 2003, quando o dólar equivalia a R$ 3, isso representava uns US$ 33. Se continuasse custando R$ 100 quando o dólar estava em R$ 1,60, esse mesmo valor passou a equivaler a US$ 62,50. A valorização da nossa moeda encareceu a maioria dos produtos quando se faz essa comparação.

ZH – Mas só o câmbio não explica muitas discrepâncias...

Bernardo – O ano de 2004 foi o marco para fixação do preço dos remédios no Brasil. Os medicamentos que entraram no mercado até 2001 tinham preço totalmente livre. Entre 2001 e 2004, houve uma regra de transição, em que começamos a trabalhar com um preço médio levando em conta o que era cobrado em alguns outros países. A partir de 2004, passamos a exigir que o preço dos novos medicamentos fosse igual ou menor ao mais baixo cobrado entre outros nove países. Um estudo mostra que, entre os produtos que entraram no país depois de 2004, 51% têm os preços mais baixos na comparação com essas outras regiões.

ZH – A maior parte dos remédios à venda é anterior ou posterior à nova regra?

Bernardo – A maioria dos produtos no mercado ainda é anterior a essa data.

ZH – Os impostos cobrados no Brasil contribuem para aumentar essa conta?

Bernardo – Realmente, os impostos cobrados sobre remédios no Brasil são bem mais altos do que nos outros países. Principalmente o ICMS, que chega a 18%, 19% em alguns Estados. Recentemente, o governo deu isenção do PIS e do Cofins para quase 70% dos medicamentos, então são 12% a menos. Mas ainda assim é uma carga muito elevada. Na maioria dos países, o imposto vai até 5%, 6%, ou não é cobrado.

ZH – E isso não vai ser revisto pelo governo?

Bernardo – Sempre se falou que a reforma tributária corrigiria esse problema. Mas como está demorando a sair, essa situação permanece.

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