segunda-feira, 18 de junho de 2012

MÉDICOS: O PROBLEMA NÃO É A QUANTIDADE

REVISTA ISTO É N° Edição:  2223, 18.Jun.12

O Brasil tem uma boa média mundial de profissionais de saúde por habitante. A questão é que eles estão concentrados em poucos Estados e na rede privada

Natália Martino

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MEDIDA
Para o MEC, a criação de novas vagas em faculdades de
medicina públicas e privadas irá melhorar o sistema de saúde

Ao autorizar a criação de 1.615 novas vagas em faculdades de medicina públicas e privadas de todas as regiões do Brasil, o Ministério da Educação (MEC) provocou uma polêmica na categoria. Segundo o MEC, a medida irá contribuir para amenizar o problema da falta de médicos no País. O Conselho Federal de Medicina (CFM) discorda. Segundo o órgão, a decisão desconsidera a qualidade da formação dos novos profissionais e se baseia na falsa premissa de que o Brasil carece de profissionais de saúde. De acordo com a instituição, a média nacional de 1,95 médico por mil habitantes (o MEC considera 1,8) é maior do que a mundial, de 1,4. O número não tem sido suficiente, porém, para reduzir as filas nos hospitais públicos nacionais e a explicação do CFM é de que os médicos estão mal distribuídos entre as regiões brasileiras e entre as instituições públicas e privadas.

De acordo com Maria Helena Machado, pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz, o principal problema do Sistema Único de Saúde (SUS) é a má gestão do trabalho. “Faltam políticas adequadas para fixar os profissionais onde eles são necessários, seja no interior do País, seja nas periferias das metrópoles”, diz. A cidade de São Paulo, por exemplo, conta com mais de quatro médicos por mil habitantes, o dobro da média nacional, mas cerca de 75% deles atuam na região central da cidade. Do Complexo Hospitalar Heliópolis, dentro da maior favela da cidade, na zona sul da capital, o cirurgião F. expõe algumas das razões para isso. “São horas de trânsito para chegar a essas áreas, onde é preciso enfrentar situações de violência e hospitais sucateados”, diz o médico, que trabalha há mais de 20 anos no local. F. preferiu não se identificar por estar sendo ameaçado de morte pela família de um de seus pacientes, que entrou em coma após uma reação à anestesia durante uma cirurgia de hérnia cervical. Nesses anos de trabalho em hospitais públicos, ele coleciona histórias de violência e tensão. Em outra ocasião, no Hospital Fernando Mauro, zona sul de São Paulo, o cirurgião salvou da morte uma adolescente de 14 anos com um tipo grave de meningite depois de o irmão da paciente sacar um revólver na recepção. “Eu poderia ter morrido antes de conseguir tratá-la”, afirma. “Além de tudo, os salários são baixíssimos e só valem a pena quando complementamos a renda com plantões.”

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"Os pacientes estão à míngua, estão morrendo.
Meu desabafo foi a gota d'água do acúmulo de estresse"

Ângela Maria Tenório, médica do Hospital Estadual Rocha Faria, no Rio de Janeiro

Para o médico e advogado Sérgio Palmeira, que lançará no segundo semestre o livro “Direito, Medicina e Poder”, um dos maiores problemas da categoria é o esquema de plantões. “Os médicos fazem plantões enormes, muitas vezes de 24 horas, apesar de isso ser vetado pelo CFM, e acham que estão se beneficiando, já que dormem no trabalho e pensam: ‘Estão me pagando para dormir’”. Essa prática possibilita, segundo o especialista, um “equilíbrio artificial” do mercado, no qual há um médico para três postos de trabalho, segundo pesquisa do CFM. A média brasileira é maior do que a mundial, de 1,4 médico por mil habitantes, mas bem mais baixa do que a de países mais desenvolvidos. Os Estados Unidos, por exemplo, contam com 2,4 médicos por mil habitantes; Portugal, 3,9; e Cuba, recordista, 6,4. “Se o número de vagas é o triplo do número de profissionais, quem diz que não faltam médicos está fazendo uma defesa corporativista por acreditar, erroneamente, que os plantões são bons para eles. Perde o paciente, que é mal atendido”, afirma Palmeira. Médicos de hospitais públicos ouvidos por ISTOÉ revelaram ser uma prática comum dois profissionais pagos para trabalhar durante as mesmas 12 horas combinarem entre si a divisão de horários – um atuaria nas primeiras seis horas e o outro nas restantes.

O fato é que, sobrecarregados, os médicos não conseguem atender à demanda. Na noite da quarta-feira 30 de maio, por exemplo, a médica Ângela Maria Tenório teve uma espécie de surto no Hospital Estadual Rocha Faria, zona oeste do Rio de Janeiro. Pelos corredores da instituição lotada, ela gritava: “Os pacientes estão à míngua, estão morrendo.” À ISTOÉ, Ângela disse que o hospital deveria ter uma equipe com nove profissionais de clínica médica, mas só vem trabalhando com quatro. Naquele dia, só ela estava presente para atender a duas enfermarias com cerca de 130 pessoas internadas e uma unidade intensiva com mais de dez pacientes em estado grave. “O desabafo foi a gota d’água do acúmulo de estresse”, disse.

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"São horas de trânsito para chegar às áreas periféricas, onde é
preciso enfrentar situações de violência e hospitais sucateados.
Atualmente estou ameaçado de morte pela família de um paciente"

F., cirurgião do Complexo Hospitalar Heliópolis, em São Paulo

O contexto, portanto, exige soluções muito mais complexas do que apenas formar novos profissionais, apesar de esses serem bem-vindos. Para Maria Helena Machado, da Escola de Saúde Pública da Fiocruz, a solução passa por planos de carreira médica similares às de juízes federais. “Ao passar no concurso, o profissional seria mandado para o interior e as periferias, mas, posteriormente, poderia ser transferido para regiões mais valorizadas, que é o que todos querem”, diz. Ela também defende a criação de facilidades para que os médicos alocados em regiões afastadas, como o interior da Amazônia, possam participar de programas de educação continuada para progredir na carreira. Abrir vagas para estudantes, portanto, não passa de uma pequena parte da solução.

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Colaborou Michel Alecrim

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