sábado, 19 de outubro de 2013

O MÉDICO QUE SOBREVIVERÁ

zero hora 19 de outubro de 2013 | N° 17588

PALAVRA DE MÉDICO | J.J. CAMARGO


Conviver com médicos em formação, respirar a ansiedade deles e ter vivido o suficiente numa fase turbulenta da medicina, para ignorar a preocupação de ser popular, têm algumas vantagens. Entre elas a de admitir que, em algumas coisas, erramos feio, como, por exemplo, não precisávamos ficar tão soberbos só porque sabemos mais do que nossos antecessores.

Se tivéssemos prestado mais atenção, teríamos entendido que aquela história de “melhoro só de olhar para o meu doutor” não era uma metáfora vazia. Havia nela um corrimão da segurança e a mão espalmada da parceria. Não devíamos ter transferido toda a culpa para um sistema podre que parece ter sido construído para frustrar os nossos sonhos.

Quando impulsivamente desviamos nossa irritação para aquele infeliz que nos impuseram tratar por um salário ridículo, cometemos dois equívocos terríveis: primeiro, magoamos quem não tinha nenhuma culpa de ter adoecido pobre num país em que apenas os slogans são perfeitos, e segundo, sabendo disso como sempre soubemos, minamos a nossa já combalida autoestima, o que nos deixou ainda mais intolerantes.

Se, naqueles ambulatórios superlotados e ensandecidos, tivéssemos gasto 10 segundos para acompanhar o paciente até a porta, e de lá trazido o seguinte pela mão, teríamos conquistado, a cada vez, duas novas pessoas carentes de afeto, e eles e nós terminaríamos aqueles encontros mais confortados e felizes. E isso dissiparia a indisfarçável onda de tristeza que ontem empanou a comemoração do nosso dia.

Claro que ver uma profissão que devia ser marcada pela doçura e pela generosidade rebaixada a uma condição de mero instrumento de sobrevivência não reforçou o ego de ninguém, mas a rebelião, ainda que justificável, claramente escolheu caminhos e instrumentos errados.

Não podíamos ter ignorado que ser médico é ter acesso a este mundo misterioso, onde a angústia, a dor e a fantasia da morte despojam o paciente de todas as posturas e encenações ensaiadas, e exteriorizam-no como um ser vulnerável e absolutamente autêntico. Foi pouco inteligente não percebermos que este relacionamento agudo e dramático, que permite que o médico aprenda, como nenhum outro, a identificar pessoas e, depois de algum tempo, a classificá-las com segurança, é um grande exercício de humanidade, que coloca o médico acima das pessoas comuns, mas exige, em contrapartida, uma grande sensibilidade e uma inesgotável disponibilidade de afeto. E, neste quesito, muitas vezes, relaxamos.

O resgate da dignidade dessa maravilhosa profissão passa pela determinação de nos opormos aos atravessadores abjetos que pretendem impor estratégias que tornem o exercício da medicina um negócio mais rentável. Na discussão sobre custos, recomendo aos mais jovens que nunca titubeiem quando a decisão envolver o que é melhor para o paciente, porque isto é, na essência, o que nos protege, realiza e justifica.

As manobras orquestradas contra a classe médica como reles estratégia eleitoreira terão sempre a efemeridade das causas vazias, e nunca ofuscarão a grandeza do nosso trunfo maior: a alegria de aliviar sofrimento. E desta nunca nos despojarão. Gosto de acreditar que descrevi o caminho do médico que, depois de ultrapassada a pantomima dos estrangeiros virtuosos, prevalecerá.

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