domingo, 30 de janeiro de 2011

EMERGÊNCIAS EM CRISE


Os números por trás do colapso - ITAMAR MELO E NILSON MARIANO, zero hora 30/01/2011

As emergências superlotadas do Sistema Único de Saúde (SUS) são a face visível e dramática de um problema mais profundo, o baixo investimento público no atendimento à população, especialmente preocupante no Rio Grande do Sul, onde o governo do Estado aplicou, entre os anos de 2004 e 2009, um total de R$ 3,75 bilhões a menos do que o determinado em emenda à Constituição Federal

As cenas de sofrimento nas emergências de hospitais públicos, com pacientes improvisados em cadeiras durante dias à espera de leitos, retratam um drama que pode ser melhor entendido quando se olha para os números do Sistema Único de Saúde.O diagnóstico de colapso no atendimento de urgência tem causas matemáticas.

Doentes gaúchos são amontoados em corredores superlotados das emergências – alguns de pé, conectados ao varal do soro – porque vivem no Estado que menos investe em saúde. Em 2009, o Piratini aplicou no setor 7,2% da receita líquida em impostos e transferências, o menor índice entre as 27 unidades da federação. Dez Estados gastam duas ou até três vezes mais.

E a situação pode piorar. No orçamento do Rio Grande do Sul para este ano, o percentual previsto para a saúde é ainda menor, da ordem de 6%. O risco é que se agrave o quadro visto nos últimos dias, quando as emergências dos hospitais Conceição, Clínicas, São Lucas e Santa Casa, pilares do SUS em Porto Alegre, receberam uma quantidade de pacientes quase três vezes superior à capacidade.

O investimento pífio do governo gaúcho contraria o que está determinado na Constituição Federal. De acordo com a emenda constitucional número 29, desde 2004 os Estados têm a obrigação de gastar no mínimo 12% da receita em ações e serviços de saúde. O Rio Grande do Sul nunca chegou perto disso. Considerando o que deveria ter aplicado e o que efetivamente executou no período de 2004 a 2009, o rombo deixado é de R$ 3,7 bilhões.

É considerável o impacto que esse dinheiro subtraído ao SUS teria, caso fosse injetado no pagamento de consultas, exames e internações. Com os R$ 3,7 bilhões é possível construir e equipar 37 hospitais com 180 leitos de média e alta complexidade, iguais ao Hospital Regional de Palmeira das Missões, que está em projeto e beneficiará 500 mil pessoas de 73 municípios. Outra conta: com o que deixou de ser aplicado em seis anos, seria possível manter ao longo desse período 11 hospitais das mesmas características.

Mas é tolerável descumprir a lei? A partir de 2007, para ter as despesas aprovadas no Tribunal de Contas do Estado (TCE), o Piratini seguiu o exemplo de outros governantes: apresentou, como se fossem gastos em saúde, custos que não são efetivamente da área. A manobra consistiu em agregar o orçamento para o saneamento – mais especificamente a verba da Corsan – ao da saúde, para atingir os 12% constitucionais.

No ano passado, na apreciação de contas referentes a 2009, o TCE aceitou pela última vez esse arranjo orçamentário. Os conselheiros do tribunal decidiram que, a partir de 2011, gastos financiados por tarifas – caso da Corsan – não poderão mais ser computados na rubrica saúde. Isso significa que o governo terá de aumentar, e muito, a verba destinada ao SUS.

Quem avisa é Cezar Miola, conselheiro do TCE e relator do parecer prévio sobre as contas de Yeda Crusius. Miola observa que, para se cumprir a máxima de que a saúde é direito de todos e dever do Estado, deve-se obedecer ao fixado na Constituição.

– A posição do TCE passa a valer tanto para o Estado quanto para os municípios – afirma o conselheiro.

Com os municípios, o TCE não deverá se incomodar. Invariavelmente acusados de enviar seus pacientes à Capital, na chamada ambulancioterapia, são os prefeitos que carregam o maior fardo do SUS. Entre as prefeituras, apenas uma não alcançou a meta de aplicar 15% das receitas em saúde. Mas raspou a trave: o percentual de Rio dos Índios chegou a 14,96%. Dos demais, 152 investiram acima dos 20%. Porto Alegre não ficou muito para trás: gastou 19,17%.

Apertem os cintos, os leitos sumiram

As emergências do SUS em Porto Alegre congestionaram, acolhendo um número de pacientes quase três vezes superior a sua capacidade, porque faltam leitos qualificados para internação de doentes graves.

Sem ter para para onde mandar os pacientes pré-atendidos, os médicos improvisam os que chegam em cadeiras, macas ou mesmo até de pé. Por dias, até semanas.

A estatística ajuda a entender como se chegou a esse caos. Levantamento feito pelo Sindicato Médico do Rio Grande do Sul (Simers), que se baseou em dados do Ministério da Saúde e do IBGE, aponta que o Estado perdeu um terço dos seus leitos entre 1993 e 2010. No período, a oferta caiu de 35.061 para 23.559, um recuo de 32,8%. Em Porto Alegre, a perda de vagas foi ainda maior: dos 8.698 leitos de 1993, restaram 5.541 – 36,3% a menos. Uma das consequências: emergências atulhadas de pacientes à espera de internação.

– Esse é o nosso cotidiano. As pessoas lotam as emergências porque há insuficiência na rede básica ou por falta de leito hospitalar na sua cidade – diz Maria Rita Assis Brasil, vice-presidente do Simers e profissional de emergência no Hospital Conceição.

As emergências sangram porque são a ponta do funil do SUS. Pacientes que penam para conseguir consulta especializada, exame ou cirurgia, às vezes ficando meses na fila de espera, têm a doença agravada. Então, só resta a última instância: a emergência.

Às vezes, pode ser tarde demais. O médico Gérson Nunes, do Hospital de Clínicas Porto Alegre (HCPA), já viu, para seu desespero, paciente morrer enquanto aguardava internação na emergência. Maria Rita conta que é habitual entrarem na emergência do Conceição homens que não conseguem urinar porque a uretra foi bloqueada por um tumor da próstata. O tumor cresceu porque o doente não obteve consulta com o urologista a tempo.

– Quando ele chega à emergência, já não tem chance de sobreviver – lamenta.

Superintendente do Grupo Hospitalar Conceição (GHC), o maior do Estado, Neio Fraga Pereira detecta um descompasso. Enquanto a população gaúcha envelheceu rapidamente, modificando os tipos e a frequência das enfermidades, a estrutura do SUS encolheu.

– Houve uma revolução demográfica e epidemiológica, mas não no atendimento de saúde – ressalta.

Para Leonardo Fernandez, chefe do Serviço de Emergência da Santa Casa, uma das causas da lotação é a deficiência do SUS na Região Metropolitana. Cerca de 40% dos pacientes atendidos na Capital são metropolitanos. Municípios populosos, como Alvorada, Cachoeirinha, Viamão e Guaíba, dispõem de serviços acanhados. Sua capacidade para diagnosticar males complexos é limitada.

Assessor da Direção Médica do Hospital São Lucas, Salvador Gullo Neto entende que deveria ser seguida uma regra. Doenças simples seriam resolvidas no próprio município. As intermediárias, no hospital regional. As complicadas viriam para as instituições de referência na Capital.

– Hoje, se recebe de todo Interior, inclusive patologias simples – informa.

As razões de um governo...

Secretário estadual da Saúde nos dois últimos governos, o deputado federal Osmar Terra discorda das alegações de que o Rio Grande do Sul é indigente na aplicação de recursos no SUS.

Destaca que os índices investidos em 2008 e 2009, durante a administração de Yeda Crusius, foram os “maiores percentuais da história”. Segundo ele, os índices superam os aplicados pelos três antecessores.

Terra garante que gostaria de ter cumprido a meta de 12%, mas diz que não havia recursos. Observa que, enquanto não for regulamentada a emenda constitucional 29 (que determina os 12% de investimento), Estados tentarão se adequar incluindo despesas com saneamento sob o guarda-chuva da saúde.

– Tem que aplicar os 12% excluindo o saneamento. Para mim, o saneamento interfere secundariamente na saúde – argumenta.

O parlamentar do PMDB ressalta que o Estado, com o que investe, ostenta os melhores indicadores de saúde do país. Esclarece que a superlotação das emergências é cíclica.

No verão, segundo ele, o problema ocorreria como consequência das férias dos médicos e da cobertura insuficiente na rede de atenção básica. Terra também contesta os dados sobre a redução de leitos, feitos pelo Sindicato Médico de Estado.

– É uma conta feita pela metade – comenta.

...e as promessas de outro

O governo Tarso Genro deve definir até 15 de maio a sua estratégia para cumprir a meta de investir 12% em saúde. Na data, será encaminhado à Assembleia Legislativa o projeto de plano plurianual do Piratini.

Novo secretário estadual da Saúde, Ciro Simoni antecipa que o documento deve trazer objetivos a atingir a cada ano e apontar fontes de recursos O plano: chegar aos 12% em 2014.

– Não tem cabimento o Rio Grande do Sul ser o Estado que menos investe. Por isso, estamos brigando para colocar recursos do tesouro na saúde. Será um esforço muito grande, mas é a prioridade do governador – anuncia.

O esforço significa dobrar a aplicação no prazo de quatro anos. Simoni observa que o orçamento para 2011, legado pelo governo Yeda, prevê apenas 6,3% das receitas para a saúde – totalizando R$ 1,16 bilhão.

Outro R$ 1,23 bilhão foi computado, mas inclui recursos da Corsan e do Instituto de Previdência do Estado, os quais Simoni exclui do cálculo.

– Nesses 6,3% ainda estão cerca de 2% referentes ao gasto com os inativos da saúde. Estamos muito longe – diz o secretário.

Para aliviar o aperto vivido agora, a ideia é buscar suplementações orçamentárias ao longo de 2011. Simoni diz que o governo estuda remanejar recursos ou utilizar na saúde o que houver de aumento na arrecadação de impostos.

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