quinta-feira, 22 de março de 2012

CAOS NO TRATAMENTO DE DOENTES MENTAIS


Saúde. Hospital São Pedro acelera para o fim do atendimento. Em cumprimento à lei de 2001 que dá fim aos manicômios, hospital psiquiátrico aguarda o óbito ou transfere pacientes para "residências terapêuticas". Humberto Trezzi e Nilson Mariano, zero hora, 17/03/2012 | 17h37

O Hospital Psiquiátrico São Pedro apressou a evacuação de pacientes, por meio de altas médicas, transferências e fechando as vagas dos mortos de causas naturais, para encerrar a trajetória de depósito de loucos, desvalidos e alienados que obteve ao longo de 128 anos. Restam 246 internos – uma ninharia perto dos 5 mil que já lotaram o grande hospício de Porto Alegre na década de 1970.

O esvaziamento vem sendo progressivo, desde 2001, em cumprimento à lei federal que criou a Reforma Psiquiátrica Antimanicomial. Foi agilizado nos últimos meses, e a meta do atual governo é zerar o número de pacientes. A justificativa é de que ninguém merece ser condenado a mofar num hospital – e isso tem a aprovação de especialistas. Mas uma sombra de dúvida paira sobre os casarões que a princesa Isabel visitou em janeiro de 1885: alguns internos não estariam sendo liberados antes do tempo?

Três mortes recentes ampliam a incerteza. Em maio de 2011, José Carlos de Camargo, 40 anos, foi atropelado na rodovia ERS-040, em Viamão, quando se dirigia ao residencial terapêutico para onde foi transferido do São Pedro. O motorista envolvido no acidente, um engenheiro civil de 32 anos, que prefere não se identificar, relatou que a vítima surgiu repentinamente à frente do carro, fora da faixa de segurança.

Nascido em Dom Pedrito, José Carlos costumava atravessar a ERS-040 para tomar um cafezinho numa loja de material de construção. O funcionário do estabelecimento, Júlio Carlos dos Santos da Silva, 23 anos, confirma a versão do motorista. Conta que, seguidamente, os vendedores ajudavam José Carlos a cruzar a rodovia, pegando-o pela mão.

– Do jeito que estava a pista, ele metia o pé e ia, nem olhava para os lados – diz Júlio Carlos, que se horrorizou ao ver o atropelamento.

Antes de ser atropelado, José Carlos teria causado outro acidente na ERS-040: um motorista freou, para desviar dele, sendo colhido por um automóvel que vinha atrás. É como se o ex-interno estivesse numa roleta-russa.

Outro ex-paciente do São Pedro, que morava com José Carlos no Residencial Terapêutico Morada Viamão, foi morto por atropelamento quatro meses depois, no mesmo local, a parada 36. Natural de Passo Fundo (Planalto Médio), Carlos Braga da Silva, 36 anos, também atravessava a ERS-040 de forma imprudente, sem prestar atenção ao semáforo.

Internos que não se adaptam à liberdade são comparados a passarinhos que desaprenderam a viver fora da gaiola. Em 14 de janeiro, Zilmar Martins, 59 anos, recebeu alta e foi alojado na casa 9 do Residencial Morada São Pedro, um condomínio situado atrás do hospital psiquiátrico e junto à vila Cachorro Sentado, na Capital. Uns garantem que Zilmar estava contrariado, seu desejo era permanecer no São Pedro. Outros asseguram que ele pediu a transferência.

Zilmar foi encontrado morto no sofá, em 16 de fevereiro, um filete de baba escorria pela boca. Havia uma pedra junto ao corpo, a vidraça da janela estava quebrada. A suposição é de que alguém, do lado de fora da casa, tentou despertar o morador. O laudo médico indicou, como causa da morte, edema pulmonar agudo.

Familiares estão preocupados com a soltura inesperada de internos. Uma moradora de Alvorada, 52 anos, que não quer se identificar, aflige-se pelo irmão, transferido para o Residencial Morada São Pedro. Acha que ele, de 42 anos, corre perigo nas ruas. Já foi a pé a Alvorada e fez coisas impensáveis. Para acender o cigarro, antes ligou o fogão a gás. Depois, ao se limpar na privada do banheiro, trocou o papel higiênico pela toalha de rosto.

– Ele não se atina – lamenta a irmã, que trabalha fora e teme confiar a casa ao visitante.

Entre o tráfico e o trânsito

Um dos destinos dos liberados do Hospital São Pedro é o Residencial Morada São Pedro, situado aos fundos do hospital, dentro da vila Cachorro Sentado, uma das mais violentas da Capital. Traficantes bloqueiam os becos. Se alguém entra no local, é cercado pelos olheiros do tráfico e tratado como forasteiro.

Inauguradas em dezembro de 2002, as 26 casas do residencial são de material, geminadas, com dois quartos, sala e cozinha. Poderiam ser agradáveis, não fosse a companhia que também amedronta trabalhadores e famílias.

Os ex-internos do São Pedro – que ocupam 51 das 108 vagas – sentem-se acuados. São chamados de louquinhos, alguns sofreram furtos. Há relatos de apedrejamento contra as casas, além do estouro de bombinhas de São João para assustar os inquilinos.

A segunda opção é o Residencial Terapêutico Morada Viamão, quatro casas inauguradas em 2006 perto da parada 36 da ERS-040. Sobram vagas: são 32 para 19 residentes. No entanto, se a travessia da rodovia já é um risco para pedestres da região, torna-se uma armadilha para quem viveu confinado por décadas.

OPINIÃO LEITORES SOBRE ZH, 22/03/2012

A excelente reportagem de Humberto Trezzi e Nilson Mariano sobre a situação calamitosa de centenas de doentes mentais que dependem do Hospital Psiquiátrico São Pedro merece e demanda comentários. Por que fechar uma instituição como esta, em vez de prepará-la para receber pacientes segundo as melhores práticas clínico-hospitalares que a ciência nos oferece? Por que não disponibilizar à comunidade as centenas de leitos possíveis, reformando os antigos pavilhões? A origem dessa situação é a ignorância e a insensibilidade. O que fazer? Combater a ignorância e a insensibilidade, conhecer a doença mental e as suas consequências e manter a compaixão pelas pessoas que sofrem por doenças que a medicina pode tratar. Luis Guilherme Streb, Médico – Porto Alegre

Parabenizo os repórteres pela matéria sobre o Hospital São Pedro. O governo, querendo acabar com a segregação dos pacientes, lança-os na crueldade do cotidiano. Uma sociedade que despeja seus pacientes psiquiátricos na rua já comete barbárie. Para a coordenadora de saúde mental, é uma questão de cumprimento da lei. Melhor para ela, que pense assim. Resguarda, desse modo, suas noites de sono tranquilo, e talvez a consciência não lhe pese tanto. Vera Ribeiro, Professora – São Marcos

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