domingo, 15 de julho de 2012

MINHA AMIGA MORREU DE GRIPE

ZERO HORA 15 de julho de 2012 | N° 17131. ARTIGOS

Flavio Pechansky, Psiquiatra


Não – a frase acima não foi dita por um pobre camponês da Idade Média, com desconhecimento dos fatos, iletrado, sem dentes, e que convivia com as pragas e pestes de uma forma passiva, pois sua expectativa média de vida era de aproximadamente 27 anos. À época não havia cura para a maioria das doenças, e morrer de gripe espanhola ou de outras pestes era a regra para uma população que vivia pouco e em condições sanitárias inaceitáveis para os padrões atuais. A frase foi dita por um médico de classe média, que mora em uma grande metrópole, com acesso direto aos serviços de saúde e informação disponíveis. Ontem foi enterrada mais uma vítima da gripe A no nosso Estado – desta vez muito perto de nós. Atendida pelas melhores e mais dedicadas equipes, em um ambiente hospitalar de alto nível, nossa amiga – que era alegre e saudável – não pertencia a nenhum “grupo de risco”, pois não era idosa, doente ou imunodeprimida. O impacto em todos é brutal – e este é o cenário sobre o qual precisamos nos debater. A gripe A não é um fenômeno distante, que atingirá pessoas parecidas ao camponês da Idade Média. Ela é um fenômeno recorrente, com data marcada para acontecer, como as enchentes dos meses de verão no Rio de Janeiro, ou qualquer acidente de trânsito com bebida alcoólica – pode em grande parte ser prevenida. Desta forma, em vários aspectos, a gripe A é passível de ter seu impacto antecipado e – se não totalmente impedido – minimizado.

Sou um profissional de saúde que lida com elementos de prevenção pública (abuso de drogas e comportamentos de risco no trânsito). Como pessoalmente não acredito em campanhas pontuais, mas sim em movimentos endêmicos e sistemáticos de informação sobre saúde, o que posso fazer é informar meu círculo pessoal – amigos, colegas, pacientes, familiares – sobre a importância da vacinação e dos cuidados de proteção, buscando ser uma “pessoa de prevenção”. Ou quando possível, através de veículos de mídia, procurar fazer com que as pessoas reflitam sobre fatos que estão à nossa volta. As filas em postos de saúde e a corrida desenfreada às clínicas particulares de vacinação demonstram o quanto a epidemia de gripe foi pouco antecipada por todos nós. De fato – vários amigos esclarecidos e muito próximos não haviam percebido a necessidade de imunização –, talvez por se acharem distantes do camponês da Idade Média e protegidos pelas paredes do castelo. Engano catastrófico. Nossa amiga foi enterrada em meio a uma epidemia – semelhante ao que foi descrito pelos diários da peste bubônica em Londres – quando a rapidez da evidência superava a velocidade da informação e da prevenção. No momento em que ela morre e deixa um vazio inimaginável entre nós, ingressando para o mundo das estatísticas frias da saúde pública, ela agora é um número. Para nós, uma perda incalculável e que nos obriga a refletir sobre nossas práticas individuais no sentido preventivo – seja desta ou de qualquer outra doença. Minha amiga morreu de gripe. Que seu falecimento nos obrigue a repensar sobre as práticas individuais e coletivas.

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