domingo, 11 de setembro de 2011

MANICÔMIOS - DESCOMPASSO NA SAÚDE

A reforma inacabada dos manicômios - MARCELO GONZATTO - ZERO HORA 11/09/2011

Falta de atendimento adequado e aumento no número de casos pela epidemia de crack chamam a atenção para as deficiências da reforma psiquiátrica implementada há uma década no país e que pretendia eliminar os antigos manicômios
Ao completar uma década no país, a reforma psiquiátrica destinada a eliminar os antigos manicômios ainda não conseguiu oferecer aos pacientes de doenças mentais uma rede de atendimento adequada.

O descompasso entre o fechamento galopante de leitos e a tímida oferta de alternativas como centros de apoio e residenciais terapêuticos provoca fenômenos como a busca de internação por via judicial e o envio de doentes para clínicas particulares, muitas vezes irregulares ou insalubres.

No mês passado, as denúncias sobre más condições de atendimento e infraestrutura no Hospital Psiquiátrico São Pedro, feitas pelo diretor-geral demissionário Lucio Barcelos, ajudaram a reacender a discussão sobre o destino dos doentes mentais gaúchos. Para a presidente da Sociedade de Apoio ao Doente Mental (Sadom), Carmen Lia, esse cenário tem relação com a filosofia antimanicomial:

– A situação atual do São Pedro vem dessa intenção de fechar os hospitais psiquiátricos. No papel, a lei é boa, mas nunca se consolidou.

A controvérsia estende-se desde 1992, quando o Estado lançou a primeira lei do país de estímulo ao esvaziamento dos hospitais psiquiátricos e à ressocialização de seus moradores. Para isso, foi proibida a abertura de leitos em instituições psiquiátricas, que começaram a definhar. Há 10 anos, um projeto similar foi aprovado nacionalmente. A lei federal determina que internações devem ser realizadas apenas como último recurso.

Depois de todos esses anos, porém, a rede que deveria receber os ex-internos ainda não está à altura do desafio. O país conta hoje com 1.650 Centros de Atenção Psicossocial (Caps) – unidades destinadas a oferecer apoio aos pacientes e eleitas uma das pontas de lança da nova política antimanicomial. O Rio Grande do Sul tem a segunda maior cobertura de Caps do Brasil, atrás apenas da Paraíba, com 1,01 centro para cada 100 mil habitantes – faixa considerada “muito boa” pelo governo federal. No entanto, conforme o médico especializado em saúde pública, ex-deputado federal e integrante da diretoria do Sindicato Médico do Estado (Simers) Germano Bonow, o problema está no tipo de unidade oferecida:

– Quase a metade dos Caps é do tipo 1, que não prevê psiquiatra. O tipo 2 tem psiquiatra, mas não funciona à noite e em fins de semana. O tipo 3, que fica sempre aberto, não tem no Rio Grande do Sul.

Ministério Público identifica explosão de abrigos irregulares

A escassez de moradias adequadas para pessoas com deficiência mental está criando polos de clínicas privadas destinadas a receber ex-pacientes psiquiátricos – muitas delas em situação irregular ou em condições insalubres.

Segundo o Ministério Público Estadual (MPE), apenas dois municípios gaúchos reúnem perto de 1 mil pessoas em pouco mais de 50 estabelecimentos, alguns deles classificados como “depósitos de gente”. Os promotores resistem em fechar essas unidades por não terem para onde encaminhar os abrigados.

Alvorada e Cachoeira do Sul são apontados pelo MPE como núcleos desse tipo de residência, que costuma misturar, em um mesmo ambiente, idosos e pacientes mentais. Além de atenderem aos próprios municípios, essas instituições recebem pessoas de todo o Estado.

– Se dizem clínicas, mas não são. Acabam sendo depósitos de doentes mentais e idosos – revela a promotora de Alvorada Rochelle Jelinek, em exercício na Promotoria da Cidadania.

Somente neste município, o MP já abriu 30 inquéritos para averiguar as condições de abrigo dos doentes – quase todos instaurados há menos de um ano. A meta é firmar termos de ajustamento de conduta com os proprietários, para que as casas contem, ao menos, com alvará, responsável técnico e separação entre idosos e pacientes de doença mental.

Normalmente, as famílias pagam aos proprietários dessas moradias para ficarem com o doente, ou o benefício que ele recebe do governo federal é utilizado para custear a estada.

“Crack está por trás de 90% dos pedidos de internação”

O Hospital Conceição, em Porto Alegre, conta com uma unidade do Caps do terceiro tipo, mas específica para usuários de álcool e drogas e ainda não certificada pelo Ministério da Saúde.

Números publicados pelo governo federal, em julho deste ano, mostram que 47% dos Caps do país são do tipo mais simples, índice semelhante aos 46% verificados no Rio Grande do Sul. Assim, em caso de necessidade de um auxílio mais especializado ou fora de horário comercial, as unidades não são úteis.

Como resultado desse contexto, muitos familiares de pacientes acabam recorrendo à Justiça em busca de socorro. Somente em Porto Alegre, a Defensoria Pública recebe 60 pedidos mensais de internação. A situação foi agravada pela recente epidemia de crack no Estado e no país.

– Nos últimos três anos, a procura de pessoas por internação aumentou em um terço, e o crack está por trás de 90% dos pedidos. O problema é que, quando a reforma psiquiátrica foi formulada, não havia esse problema – acredita a defensora pública Paula Pinto de Souza.

A coordenadora de Saúde Mental da Secretaria Estadual da Saúde, Karol Veiga Cabral, afirma que o Rio Grande do Sul tem as melhores médias do país quando o assunto são leitos psiquiátricos e Caps. Ela destaca ainda que a retirada dos pacientes dos hospitais psiquiátricos garante maior qualidade de vida a eles. Karol admite, porém, que é necessário investir na rede de saúde básica:

– A atenção básica precisa atender questões de saúde mental. É difícil, porque é preciso qualificar os profissionais.

O BALANÇO DA REFORMA

Estima-se que, no final dos anos 80, havia 120 mil leitos em instituições psiquiátricas no país, o que teria resultado em uma perda de 87 mil vagas até hoje. Dados mais recentes mostram que a diminuição desses estabelecimentos continua em ritmo intenso.

Total de leitos psiquiátricos no RS

810 em instituições especializadas
875 em hospitais gerais
671 específicos para álcool e drogas

OS GARGALHOS - Confira alguns dos principais pontos da política antimanicomial que necessitam de maiores investimentos para compensar o fim dos manicômios:

CAPS - Existem 1.650 Centros de Atenção Psicossocial (Caps) no país, mas esse número abrange somente 68% da população. Ainda assim, a maior parte dos Caps são do tipo mais simples, que não contam com psiquiatra e funcionam apenas durante o dia e fecham aos fins de semana. Apenas 3,3% dos centros contam com psiquiatras e atendimento 24 horas.

VOLTA PARA CASA - O programa De Volta para Casa, que procura retirar doentes de hospitais e encaminhá-los para uma moradia convencional mediante o pagamento de um benefício, até o momento, atende apenas 3.832 pessoas em todo o país. A publicação Saúde Mental em Dados - 9, lançada pelo governo federal em julho, admite a lentidão do processo: “o ritmo de incorporação de egressos ao Programa de Volta para Casa é menor que o desejável.”

RESIDÊNCIAS TERAPÊUTICAS - A oferta de residências terapêuticas, casas com apoio especializado para receber egressos de hospitais psiquiátricos, é outro gargalo da reforma psiquiátrica. Em 2006, o Ministério da Saúde avaliou que 12 mil pacientes poderiam se beneficiar de transferências para esses lares. Cinco anos depois, o número de beneficiados ainda é de apenas 3.236.

COMBATE AO CRACK - Desde o final dos anos 80 até hoje, pelo menos 80 mil leitos foram fechados em instituições psiquiátricas no país. Com a explosão no consumo de crack, que exige internação de pacientes muitas vezes em severas crises de abstinência, as vagas restantes tornaram-se insuficientes para dar conta da crescente demanda. No Rio Grande do Sul, a Secretaria Estadual da Saúde informa que existem 671 leitos para álcool e drogas. Ainda assim, apenas na Capital, a Defensoria Pública recebe 60 pedidos mensais de internação psiquiátrica por via judicial – 90% relacionados com o crack.

PREVENÇÃO BÁSICA - Outro ponto fraco da política nacional de saúde pública é a oferta de prevenção em saúde mental na rede de saúde básica. Na prática, doenças como depressão acabam não recebendo o tratamento preventivo adequado e acabam se agravando até o ponto de necessitarem de uma intervenção mais severa ou até de uma internação.

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