domingo, 23 de setembro de 2012

DUPLO PAGAMENTO POR CIRURGIA



ZERO HORA 23 de setembro de 2012 | N° 17201

SAÚDE

Ex-sem terra, assentada na Fazenda Annoni, a agricultora Nersa Batista, 44 anos, sofria frequentes hemorragias no útero. Procurou atendimento médico em Pontão, cidade onde fica o assentamento, 350 quilômetros ao norte de Porto Alegre. Após um ultrassom, o médico recomendou que ela fizesse uma histerectomia (cirurgia de remoção do útero e ovários). Na Secretaria Municipal de Saúde de Pontão ela foi atendida por um dos funcionários, que também é diretor no Hospital dos Trabalhadores de Ronda Alta, onde seria realizada a cirurgia.

– Ele me disse que o cirurgião de Ronda Alta não atendia pelo SUS, mas que eu poderia fazer assim mesmo a operação, desde que pagasse R$ 250, evitando a fila. Do contrário, teria de esperar de dois a três anos por uma cirurgia em Passo Fundo. Aceitei pagar, fui muito bem atendida pelo médico – descreve Nersa.

Houve apenas um desencontro de valores. Após conversa com o médico, a Secretaria Municipal de Saúde teria subido o preço da cirurgia para R$ 850. Depois de renegociar, Nersa conseguiu um abatimento e topou fazer a operação por R$ 350, em três parcelas. Fez a cirurgia em 1º de setembro de 2011.

A surpresa veio em fevereiro, quando Nersa recebeu, no seu sítio da Fazenda Annoni, uma correspondência do Ministério da Saúde. Era a Carta SUS, enviada pelas autoridades para todas as pessoas que se submetem a internações pelo Sistema Único de Saúde. Nela constava a informação: “valor pago pelo SUS no seu atendimento: R$ 722,03”.

– Quase caí para trás. Nunca me disseram que a cirurgia era custeada pelo SUS. Me senti humilhada e lesada.

Nersa prestou queixa ao Ministério Público Estadual, em Passo Fundo. O promotor Paulo Cirne abriu uma investigação e constatou que a cobrança de valores por cirurgias realizadas e já pagas pelo SUS era prática corriqueira em 14 municípios. As prefeituras dessas cidades formaram um consórcio com objetivo de, supostamente, complementar os valores do SUS, considerados baixos por médicos e hospitais:

– Uma irregularidade disseminada. As investigações indicam que os valores foram mesmo usados em atendimentos hospitalares. Mesmo assim, uma ilegalidade flagrante, já que o SUS já tinha pago pelo serviço. Os administradores podem ter cometido improbidade ou até crime.

O caso está sendo investigado em várias frentes, inclusive em auditoria do Ministério da Saúde. Uma auditoria feita pela secretaria estadual de Saúde considerou que “houve duplicidade de cobrança, irregular” e recomendou ressarcimento dos valores por parte da prefeitura de Pontão.

Uma comissão da Câmara de Vereadores de Pontão constatou que a prefeitura local arrecadou, entre 2009 e 2012, R$ 50,8 mil para pagar serviços hospitalares. Mesmo sem comprovação documental dos nomes para quem foram destinados os valores, a prefeitura, em diversos depoimentos, assegurou que o dinheiro foi repassado a prestadores de serviços de saúde contratados.

CONTRAPONTO

O que disse a prefeitura de Pontão, em sindicância feita pelo próprio município: “O Conselho Municipal de Saúde aprovou a contratação de consultas e exames especializados, que não fazem parte da atenção básica do SUS. Foi decidido que parte desses serviços seria custeada pelo município e, parte, pelos usuários do serviço, quando estes tivessem condições de fazê-lo. Era uma espécie de convênio com os prestadores de serviço médico. A partir de setembro de 2009, o sistema passou a vigorar também para internações hospitalares de cirurgias eletivas. Os valores recolhidos pelos usuários junto aos cofres municipais foram integralmente passados aos prestadores de serviço (médicos e hospital). As pessoas não eram coagidas ou obrigadas a fazê-lo.”

Severino Balbinotti, da direção do Hospital dos Trabalhadores de Ronda Alta (Atra) e também servidor da Secretaria Municipal de Saúde de Pontão, diz que apenas informou o valor estabelecido pelo consórcio em vigor para a cirurgia de Nersa Batista. E que o valor foi repassado integralmente ao médico.

COMO DENUNCIAR

O diretor do Departamento Nacional de Auditoria do SUS (Denasus), Adalberto Fulgêncio, explica o procedimento que deve ser tomado caso o usuário do SUS sofra algum tipo de cobrança pelo serviço prestado:

– É ilegal. Todo usuário que tenha procurado o SUS e que por ventura sofra alguma cobrança deve procurar a Ouvidoria do SUS, pelo telefone 136, o Conselho de Saúde municipal de sua cidade ou o Ministério Público.

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