domingo, 16 de outubro de 2011

LEI DE DOAÇÃO PRESUMIDA - POR FAVOR, OUTRA VEZ, NÃO!

POR FAVOR, OUTRA VEZ, NÃO! - José J. Camargo, Diretor do Centro de Transplantes da Santa Casa de Porto Alegre e pioneiro em transplante de pulmão na América Latina - ZERO HORA 16/10/2011


A boa intenção é importante na proposição de emendas constitucionais, mas não é suficiente se não houver aplicabilidade à nova lei. Isso ficou bem claro quando, no governo de FHC, foi proposta a lei da doação presumida, ou seja, todo brasileiro, ao morrer, seria doador de órgãos, a menos que em vida houvesse se manifestado, por escrito, contra a doação. Consequência: o povo inculto se sentiu coagido pela legislação e as doações diminuíram. Aliás, nunca se transplantou tão pouco como naquela época. Mais do que isso, o povo instado a colocar nos documentos a sua opção pessoal, involuntariamente contribuiu para traçar o mapa do desenvolvimento social brasileiro. No Brasil que parece Bélgica, as negativas chegaram a 17%-18%, enquanto que no Brasil que tem certeza de que é Índia, esses índices ultrapassavam 86%.

Mal passados 14 anos, sem nenhuma razão para supor que tenhamos avançado mais que poucos milímetros na escala do desenvolvimento social, eis que a malfadada lei pinta outra vez no horizonte, trazida pela ingênua intenção de ajudar da deputada gaúcha Manuela D’Ávila.

Nada poderia ser mais impróprio e inoportuno, numa área em que somos tão carentes de educação.

Essa lei funciona bem, e há muito tempo, na França ou na Espanha, onde um pai, se for informado da morte do filho, quando conseguir falar depois do impacto da tragédia, provavelmente perguntará: “A que horas devolverão o corpo depois da retirada dos órgãos?”.

Ou na Áustria, onde há 200 anos os médicos realizam necropsia, sem autorização da família, sempre que considerarem que o exame post mortem pode contribuir para o entendimento do caso.

Era fácil presumir, e a experiência prévia confirmou, que não funciona aqui, nesta colcha de retalhos cultural, onde desinformação, crenças e mitos convivem com uma naturalidade só explicada pela democratização da ignorância.

Lembramos bem os argumentos usados pelo povo para negar a doação naquela época: mesmo assegurando que nenhum órgão seria retirado sem a concordância da família, o que por si só já evidenciava a inocuidade da lei, os incautos bramiam que essa lei fora criada para obrigar os pobres a doar para os ricos necessitados de transplante.

É ingênuo supor que se pode copiar leis que são acatadas em países desenvolvidos e implantá-las aqui, onde toda semana se anunciam curandeiros milagrosos e até um astro global parece compenetrado ao submeter-se a uma cirurgia espacial para tratamento de um linfoma. Menos mal que a quimioterapia não foi suspensa para avaliar os resultados do método divino!

Cara deputada, converse com pessoas ligadas ao Sistema Nacional de Transplantes e descubra que a passos seguros estamos avançando nesta área e em vários Estados brasileiros as taxas de doação por milhão de habitantes já se aproximam dos índices europeus, e, por favor, retire esta sua emenda.

Sensibilizados com sua boa vontade e desprendimento, marcas inquestionáveis de sua atuação política, deixamos três pedidos:

– Converse com as pessoas que transplantam, ouça a Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO) e informe-se do que ocorreu no passado tão próximo.

– Proponha a obrigatoriedade do ensino nas escolas de ensinos Fundamental e Médio, de temas sobre a morte encefálica e a doação de órgãos. As nossas crianças seriam os veículos da informação para o seio familiar e os artífices da criação de uma cultura sólida neste assunto, que atualmente é considerado um confiável marcador de desenvolvimento social em todo o mundo.

– Exija o cumprimento de uma portaria que propunha a criação do cadastro nacional dos doadores de órgãos, uma medida útil para antecipar a decisão pessoal de cada brasileiro, e que nunca saiu do papel.

Como se vê, é possível contribuir para o aperfeiçoamento desse processo.

E sem repetir os danosos erros do passado!

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